terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Orfeu Rebelde


Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.


Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.

Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.

Miguel Torga – Orfeu Rebelde (1958)
 




Orfeu rodeado de animais- Museu Cristão-Bizantino, Atenas

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O Tratado das Alcáçovas


Ainda a “Excelente Senhora”

A participação activa de D. Afonso V na Guerra da Sucessão de Castela, em apoio de sua sobrinha D. Joana, que desposou, e intitulando-se Rei de Castela, veio reabrir os diferendos ainda não totalmente sanados entre os dois países, após o desfecho da batalha de Aljubarrota em 1385.

Em retaliação, os Reis Católicos intitularam-se também Reis de Portugal, e as investidas bélicas tanto em terra como no mar foram-se sucedendo, sendo os castelhanos incentivados pelos seus soberanos a explorarem os recursos de pesca e outros principalmente nas zonas da Guiné e Cabo Verde, e premiando a captura das naus portuguesas que sulcavam aqueles mares, com evidente prejuízo para o comércio marítimo de Portugal. Foi assim que perdemos a caravela Boa Vista, cujo quinto foi avaliado em 1477 em 11.200 maravedis.

Todas estas escaramuças tornaram a guerra inevitável e a 2 de Março de 1476 teve lugar a Batalha de Toro, perto da localidade do mesmo nome, na província de Zamora, cujo resultado, embora com vitórias e derrotas de ambos os lados, não foi favorável às pretensões portuguesas.

Depois de uma tentativa falhada de conseguir uma ajuda militar por parte de Luís XI, rei de França, para os seus objectivos, D. Afonso V regressa a Portugal desiludido, e deixa nas mãos de seu filho, o príncipe D. João, os poderes necessários para negociar a paz com Castela.

A 4 de Setembro de 1479 é firmado nos Paços dos Henriques, em Alcáçovas, no Alentejo, pelos representantes de Portugal e Castela um acordo, que ficou conhecido como o Tratado de Alcáçovas, pondo fim à Guerra de Sucessão de Castela (1475-1479).

Este tratado foi ratificado pelo rei de Portugal em 8 de setembro de 1479, confirmado por Isabel I na cidade de Trujillo, a 27 do mesmo mês (Fernando de Aragão estava ausente do reino devido à morte do seu pai), e ratificado pelos Reis Católicos em 6 de março de 1480, na cidade de Toledo, pelo que também ficou conhecido como Tratado das Alcáçovas-Toledo.

Além de formalizar o fim das hostilidades (pelo qual Joana, a Beltraneja, ou A Excelente Senhora, e seu tio e marido Afonso V de Portugal, desistiam para sempre das suas pretensões ao trono de Castela), e reconhecer os dois reinos como entidades independentes, o Tratado continha outras cláusulas concernentes à política de projeção externa de ambos os países, num momento em que os dois reinos competiam pelo domínio do Oceano Atlântico e das terras até então descobertas na costa africana.

Por essas cláusulas, Portugal obtinha o reconhecimento do seu domínio sobre os Arquipélagos da Madeira, dos Açores, de Cabo Verde, do senhorio da costa da Guiné com o ouro da Mina, e a exclusividade sobre a conquista do reino de Fez.

Castela ficava com a soberania sobre as ilhas Canárias (pondo fim a um diferendo que se arrastava desde o reinado de D. Afonso IV), renunciando a navegar ao Sul do cabo Bojador, ou seja, do Paralelo 27 no qual se encontravam as próprias ilhas, e a exclusividade da conquista do reino islâmico de Granada.

Acordava-se também na mútua devolução de povoações e territórios, bem como na dos prisioneiros de ambos os países e a restituição de bens e mercês àqueles a quem haviam sido confiscados. Fixavam-se as indemnizações devidas pelas destruições feitas durante a guerra e a destruição de fortalezas entretanto construídas para o efeito.

O Tratado foi o primeiro do género, que regulamentava a posse de terras ainda não descobertas. Reflectia o interesse de Portugal em garantir os seus direitos sobre a costa da Mina e o Golfo da Guiné, assim como o prosseguimento da sua exploração da costa africana, na premissa de que por aquela via se conseguiria a esperada passagem para as Índias.

Em paralelo ao tratado das Alcáçovas negociaram-se as chamadas Tercerias de Moura, que resolviam a questão dinástica castelhana e o destino a dar à ex-rainha de Castela e Portugal, a infeliz Joana de Trastâmara, denominada pelos castelhanos de “A Beltraneja”, e pelos portugueses como “ A Excelente Senhora”.

 

Gomes, Saul António – D. Afonso V, ed. Temas e Debates, col. Reis de Portugal.
Ramos, Rui – Monteiro, Nuno Gonçalo – Sousa, Bernardo Vasconcelos e – História de Portugal, vol.2 – ed. Expresso.

 

sábado, 5 de janeiro de 2013

Os Reis Magos

Diz a Sagrada Escritura
Que, quando Jesus nasceu,
No céu, fulgurante e pura,
Uma estrela apareceu.
Estrela nova ... Brilhava
Mais do que as outras; porém
Caminhava, caminhava
Para os lados de Belém.
Avistando-a, os três Reis Magos
Disseram: “Nasceu Jesus!”
Olharam-na com afagos,
Seguiram a sua luz.
E foram andando, andando,
Dia e noite a caminhar;
Viam a estrela brilhando,
Sempre o caminho a indicar.
Ora, dos três caminhantes,
Dois eram brancos: o sol
Não lhes tisnara os semblantes
Tão claros como o arrebol
Era o terceiro somente
Escuro de fazer dó ...
Os outros iam na frente;
Ele ia afastado e só.
Nascera assim negro, e tinha
A cor da noite na tez :
Por isso tão triste vinha ...
Era o mais feio dos três !
Andaram. E, um belo dia,
Da jornada o fim chegou;
E, sobre uma estrebaria,
A estrela errante parou.
E os Magos viram que, ao fundo
Do presépio, vendo-os vir,
O Salvador deste mundo
Estava, lindo, a sorrir
Ajoelharam-se, rezaram
Humildes, postos no chão;
E ao Deus-Menino beijaram
A alva e pequenina mão.
E Jesus os contemplava
A todos com o mesmo amor,
Porque, olhando-os, não olhava
A diferença da cor ...
Olavo Bilac  -  Poesias infantis