terça-feira, 30 de agosto de 2011

As camarinhas

As camarinhas

Dizem que Santa Isabel
Rainha de Portugal
Montando branco corcel
Percorria o seu pinhal!

-“Ai do meu Esposo! Dizei!
Dizei-me, robles reais!
Meu Dinis! Senhor meu Rei!
Em que braços suspirais?!...

Os robles silenciosos
Do vasto Pinhal do Rei
Responderam receosos
– Não sei!...

E o pranto da Rainha
Nas suas faces rolava,
Regando a erva daninha
No pobre chão que pisava!

– “ Ó meu Pinhal sonhador
Que o meu Rei semeou!
Dizei-me do meu Amor
E se por aqui passou...”

Os robles silenciosos
Do vasto Pinhal do Rei
Responderam receosos:
– Não sei !...

Mas cristalizou-se o pranto
Em muitas bagas branquinhas
E transformou-se num manto
De brilhantes camarinhas!...

Eis que repara a Rainha
Numa casa iluminada...
– “ Quem vela nesta casinha
Numa hora adiantada ?!...”

Os robles silenciosos
Tão tristes que nem eu sei,
Responderam receosos:
– O Rei!...

Afonso Lopes Vieira – “Onde a Terra se acaba e o Mar começa”


sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Hefesto e Afrodite


Como recompensa por ter fabricado os raios de ouro com que Zeus venceu os Titãs, Hefesto pediu a mão de Afrodite, a deusa da beleza e do amor. Zeus ainda hesitou, estremecendo só à ideia de tal casamento, mas a beleza da deusa era tal, que todos os deuses a assediavam, e as restantes deusas cheias de ciúmes, queriam que ela tivesse algum castigo, exactamente por ser tão deslumbrante...
E assim, por ordem do rei dos deuses, Hefesto recebeu o seu prémio e Afrodite viu-se obrigada a casar com o deus feio, disforme e coxo, que apenas lhe inspirava um sentimento de indiferença. Sempre apaixonada, traía o marido tanto com imortais como com belos mortais desde que lhe agradassem, adornando-se com as belíssimas joias que o deus metalúrgico fabricava para ela, pensando conquistá-la assim.
Uma das grandes paixões de Afrodite, foi Ares, o violento senhor da guerra. O par amoroso encontrava-se durante a noite, no próprio palácio de Hesfesto, durante as suas frequentes ausências, para que Helios, o deus do Sol, inimigo de Ares, não descobrisse os seus encontros secretos. Para isso, deixava sempre o jovem Electrion, seu confidente, de guarda, para os avisar quando chegasse a alvorada.
Ora aconteceu que, uma noite, Electrion deixou-se dormir, e Helios, que tudo vê e tudo ouve, ao passar com o carro do Sol por cima do palácio de Hefesto, descobriu os dois amantes e, sem demora, foi avisar o senhor dos vulcões. Este, cheio de raiva e roído de ciúmes, fabricou uma finissima rede, quase invisível, que presa à cama, envolveria os dois apaixonados e da qual não se poderiam libertar.
Este tema mitológico foi tratado por grande número de pintores desde o Renascimento, entre eles Botticelli, Tintoretto, e Mark van Heemskerck.
Cerca de 1555, Jacopo Tintoretto pinta a tela acima apresentada, medindo 1,35m de comprimento x 1,98m de largura, adquirida em 1925 pela Antiga Pinacoteca de Munique, na Alemanha, onde se encontra.
Nela, podemos apreciar Vénus reclinada no leito e que Hefesto destapa com uma mão, enquanto que com a outra, prende a rede à cama, sem que a deusa se aperceba. Este movimento é reflectido pelo espelho na parede do fundo. Eros, o filho de Afrodite, e que normalmente está sempre vigilante, encontra-se adormecido. Por sua vez, Hefesto não se apercebe da presente de Ares debaixo da outra cama (reconhecível pelo elmo que lhe cobre a cabeça), tentando desesperadamente calar o cão, que com os seus latidos pretende chamar a atenção do dono para a presença de um estranho. Mas o deus coxo, está tão concentrado na montagem da sua vingança, que nem o ouve.
Reza a lenda, que não se apercebendo da rede, os dois amantes depois da saída de Hefesto, retomam a sua actividade amorosa. A mola da armadilha é accionada e o par fica preso na teia.
Depois disto, Hefesto convoca todos os deuses do Olimpo, mostrando-lhes a rede onde Afrodite e Ares, se debatem como dois peixes e da qual ele não pretende libertá-los. Apesar das gargalhadas dos deuses, mais pelo caricato da situação, do que por simpatia pelo deus traído, Poseídon e Hermes, conseguem que o irredutível Hefesto deixe o par sair em liberdade. Ares, humilhado, transforma Electrion num galo, para que todos os dias, pontualmente, anuncie o nascer do sol.
Martin Van Heemskerck, um dos principais pintores holandeses do sec. XVI, trata a humilhação dos dois deuses perante os seus pares, nesta tela que faz parte de um triptico dedicado a Hefesto, realizada em 1540. A obra completa, encontra-se na Galeria Narodni, em Praga.


quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O DEUS FERREIRO – II


Foi também Hefesto que com o seu machado abriu o cranio de Zeus ( o que provavelmente lhe terá dado algum prazer), para que a deusa Atena pudesse nascer, depois de o rei dos deuses se ter queixado de uma horrível dor de cabeça. A sua melhor obra foi, no entanto, a criação da primeira mulher, Pandora, que ele modelou em argila, a pedido de seu pai. Era tão bela, que podia rivalizar com as deusas do Olimpo!
Hefesto era geralmente representado encostado a uma bigorna, com um martelo numa mão e uma tenaz na outra, e com um boné ponteagudo na cabeça. Construiu para si um palácio magnifico em bronze assim como servos mecânicos para o servirem, os quais poderemos considerar como os antepassados dos modernos robots…
Tinha vários templos no Egipto, na Grécia e em Roma. No Hefestión, o seu templo em Atenas, organizavam-se corridas em sua honra, onde os atletas corriam levando tochas acesas, que não poderiam deixar apagar. O corredor a quem isso acontecesse, teria de sair da arena.
Em Roma, as Vulcanais duravam oito dias, acendendo-se fogos em vários pontos da cidade, e o seu templo estava perto do Circo Flamínio, inaugurado cerca de 215 a.C. Parte do armamento tomado ao inimigo era-lhe dedicado e o leão era-lhe consagrado, porque este animal quando está zangado, parece deitar fogo pelos olhos.
Apesar de coxo, feio e disforme, só se ligou a belas mulheres…Depois de se divorciar de Afrodite devido às suas inúmeras infidelidades e de quem não teve descendencia, casou com Aglaia, a mais jovem das Três Graças, de quem teve quatro filhos. Além destas duas beldades, teve várias ligações amorosas das quais teve também descendentes, entre eles, o ladrão Perifetes e Palemónio, um dos Argonautas.
Apesar de o metal já ser conhecido, o Forno, o Fole, a Bigorna, o Martelo, a técnica de Fusão e tratamento do Ferro revolucionaram o uso dos metais, possibilitando o surgimento da Metalurgia, com a qual o homem passou a produzir a própria matéria de que serão feitas Ferramentas. O Ferreiro passou a ser o mestre e o fabricante de ferramentas e armas, adquirindo, em todos os povos que dominavam a Metalurgia, um papel de destaque. Aparecem então os deuses ferreiros que usam o martelo, a bigorna ou mesmo o fogo, na forma de raio, para simbolizar o poder e a força. O culto a Hefesto parece ser originário do Médio Oriente, espalhando-se depois para a Europa, através da Grécia e Roma. Em Ugarit (actual Ras Shamra, a norte da Síria), o deus-artesão Kothar-Wa-Khasis parecia ser manco, defeito esse extensível tanto ao Hefesto grego e ao Vulcano romano, como a Weland ou Wayland, o deus ferreiro da mitologia nórdica.


Fontes: Historia Y Vida, nº 509
Magno, Albino Pereira – Mitologia
Deuses da Mitologia – Editorial Minerva
www. pt.wikipedia.org.

domingo, 21 de agosto de 2011

O DEUS FERREIRO - I


Conhecido como o Ferreiro Divino, Hefesto (o Vulcano romano), Senhor dos vulcões, do fogo, dos metais e da ourivesaria, era tão feio e disforme à nascença, que sua mãe Hera, a rainha dos deuses, não podendo suportar a vergonha de o ter dado à luz, lançou-o do Monte Olimpo para o Mar Egeu. Recolhido pelas nereidas Tétis e Eurínome, com elas ficou durante nove anos no fundo do Oceano, praticando em segredo numa forja os seus dons extraordinários para os metais.
Ressentido com o desprezo evidenciado por sua mãe, fabricou um belíssimo trono em ouro finamente cinzelado, enviando-o a Hera, que ao vê-lo,logo se sentou nele. O pior, foi quando ao tentar levantar-se, não o conseguiu fazer… Tinha ficado presa ao assento!
Como nenhum dos deuses a conseguia tirar dali, chamaram Vulcano que repetidamente se negou a aparecer, deixando a deusa humilhada e enfurecida. Por fim, Baco, o deus do vinho, foi procurá-lo e embriagando-o, trouxe-o de volta ao Olimpo, onde o deus se compadeceu dos lamentos de sua mãe, libertando-a.
Porém, não ficou ali muito tempo. Numa das muitas contendas entre Zeus e Hera, este, enfurecido, mandou suspender a mulher na abóbada celeste presa a uma corrente de ouro. Mas Hefesto, achando o castigo demasiado severo, tirou-a dali, o que lhe valeu um valente pontapé do rei dos deuses que o atirou novamente para fora do Olimpo, vindo, a aterrar na ilha de Lemnos, e partindo as duas pernas na queda.
Os habitantes tratataram-no com todo o carinho, mas o deus ficou coxo para sempre…Como recompensa, Hefesto ensinou-os a trabalhar com as forjas, a fundir os metais e a fabricar os utensílios para a lavoura, o que valeu à ilha ser frequentemente abalada por tremores de terra.
Mais tarde, transferiu as suas forjas para as amplas cavernas do Monte Etna, na Sicília, onde teve por auxiliares os Ciclopes, gigantes com um só olho, que viviam aprisionados no interior da Terra. Estas forjas enormes, manejadas pelos Ciclopes, deram origem ao vulcão e às suas erupções, através das quais eram expelidas as chamas e o fumo que provocavam quando em actividade. Sempre que o deus se ausentava, as forjas paravam e o vulcão ficava inactivo…
Um verdadeiro artista, das suas mãos saíam peças tão belas, que depressa todos os deuses quiseram possuir alguma! Agradecido a Tétis pela sua protecção, forjou para Aquiles, seu filho, a esplendida armadura que o herói usou na Guerra de Tróia. Fabricou também, entre outros, o colar de Hermione, a coroa de Ariadne, as armas de Eneas, o ceptro e a égide de Zeus, o palácio do Sol, o carro de Apolo, o cinturão de Vénus e as joias que a Deusa usava.
Foi a ele que Zeus recorreu quando teve de enfrentar os Titãs. Hefesto fabricou então os famosos raios que deram a vitória ao Senhor do Céu. Em agradecimento, Zeus deu-lhe Afrodite, a deusa da Beleza e do Amor como esposa, o que depressa se tornou num presente envenenado…Não era fácil ter uma esposa assim!
Mas, como nem tudo são rosas mesmo na vida dos deuses, Hefesto, bastante contrariado, teve de fabricar as fortes correntes de ferro com que por ordem do Senhor do Olimpo, agrilhoou Prometeu (o criador do primeiro homem) à rocha, no Monte Cáucaso, auxiliado por Cratos (o Poder) e Bia (a Violência).


terça-feira, 16 de agosto de 2011

A Assunção de Maria e o culto a Nossa Senhora da Boa Morte

A celebração da Assunção ao Céu em corpo e alma da Virgem Maria é um dos cultos marianos mais antigos que se conhecem e que deu origem à devoção a Nossa Senhora da Boa Morte.
Nos finais do séc. V, começaram a aparecer textos apócrifos sobre a morte de Maria, embora divergissem entre si. Uns achavam que o seu corpo tinha ficado no túmulo, luminoso e incorruptível, outros, que Jesus a tinha levado para o céu em corpo e alma. Apesar disso, a crença espalha-se, primeiro no Oriente, onde teve o seu início, e mais tarde, no Ocidente, trazida pelos cristãos bizantinos.
Segundo a tradição, Maria, por volta do ano 42 da nossa era, entra em “dormição” (isto é, no sono da morte, o que não é bem a morte comum), rodeada pelos apóstolos, que depositam o seu corpo num túmulo novo. Três dias depois, a pedido de S. Tomé, que não tendo chegado a tempo, queria honrar a Mãe de Deus, o sepulcro é aberto e, para espanto de todos, apenas se encontram nele as mortalhas em que o corpo tinha sido envolvido. Admirados, os Apóstolos fecham novamente o túmulo, convencidos de que a Virgem tinha sido “Assunta” isto é, levada em corpo e alma para o Céu.
Um texto difundido no Ocidente por Gregório de Tours dizia que “quando Maria agonizava, os Apóstolos acorreram todos, de cada país, para a sua casa. Velavam por ela quando o Senhor veio, escoltado pelos seus anjos, e recebendo a alma de Maria, entregou-a ao Arcanjo Miguel e retirou-se”. Ao romper do dia, os Apóstolos puseram o seu corpo na tumba, esperando o seu regresso: “Subitamente, Jesus apareceu-lhes de novo e arrebatando o corpo numa nuvem fê-la transportar assim para o Paraíso”.
O Imperador Maurício, que na altura, reinava no Império Romano do Oriente, estabeleceu a data de 15 de Agosto para comemoração da “Dormição da Assunta”, ou a “Dormição” da Mãe de Deus. Mais tarde, o Papa Sérgio I introduziu-a na liturgia romana.

No Ocidente, o culto à ”Dormição de Maria” deu também lugar à homenagem da Nossa Senhora da Boa Morte. Antigamente, era costume na véspera do dia 15 expor á adoração dos fiéis a imagem da Virgem adormecida num esquife, que na manhã seguinte, era trocada pela imagem de Nossa Senhora da Assunção.
Em 1661, Francisco Homem de Couto mandou erigir uma capela a Nossa Senhora da Boa Morte na freguesia da Calheta, e junto a Ponte de Lima existe também uma igreja com o mesmo nome, que na sua capela-mor exibe um belíssimo conjunto escultórico sobre este tema.
A 1 de Novembro de 1950, o Papa Pio XII, através da Constituição apostólica “ Magnificentissimus Deus”, proclama o dogma da Assunção de Nossa Senhora, sem no entanto se pronunciar quanto à sua morte ou “dormição”. Mas já João Paulo II na audiência geral de Junho de 1997 diz: “Qualquer que tenha sido o fato orgânico e biológico que, do ponto de vista físico, Lhe tenha produzido a morte, pode-se dizer que o trânsito desta vida para a outra foi para Maria um amadurecimento da graça na glória, de modo que nunca melhor que nesse caso a morte pode conceber-se como uma "dormição".
Qualquer destes temas, Dormição, Assunção e Boa Morte, foram tratados através dos tempos pelos mais variados artistas, tanto na pintura, como na escultura ou na literatura, desde os ícones bizantinos até às obras do Renascimento e do Barroco, ou aos mais recentes livros dos autores modernos.

Designação: Nossa Senhora da Boa Morte
Autor: Desconhecido
Cronologia: Séc. XVII
Proveniência: Desconhecida
Escultura em madeira estofada. Nossa Senhora aparece deitada com um vestido decorado com motivos florais e um véu na cabeça. Sobre este, um manto que lhe cobre também a cabeça e se estende praticamente até aos pés. As suas mãos estão em gesto de oração e a sua cabeça pousa numa almofada decorada com motivos vegetalistas. O seu leito está rodeado com oito cabeças de anjinhos de asas abertas: três na parte superior, três na parte inferior e um a meio de cada uma das partes laterais. (masampaio.imc-ip.pt)

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Torneios Medievais - II

O seu objectivo não era matar ou aniquilar o adversário, mas sim, vencê-lo e capturá-lo. Para ser libertado, o vencido teria de pagar um resgate (às vezes elevadíssimo, dependendo da categoria do cativo), e as suas armas e cavalos eram entregues ao vencedor.
Qualquer morte era considerada acidental e deplorada nos dois campos. Como em qualquer jogo, vencia a melhor equipa, por isso, não eram aconselhados actos de bravura isolados, até porque podiam acabar com a detenção do cavaleiro pelo grupo adversário.
A violência dos golpes dados era tal, que, para além da morte, provocava também inúmeras mutilações, de que muitas vezes os feridos nunca se recompunham. Em 1186, Godofredo Plantagenta morre num torneio perto de Paris. Tentando limitar os ferimentos, favoreceu-se o “béhourd”, competição em que as armas eram embotadas e as couraças acolchoadas. Mesmo assim, no “béhourd” de Blyth, em 1256, dois pares do reino são mortos, e o conde de Norfolk, sofrerá para o resto da sua vida dos ferimentos que lhe foram infligidos.
Vários Papas condenaram estas diversões pelo elevado número de homens mortos e estropiados que causavam, e que assim, não poderiam ser aproveitados para as Cruzadas, chegando mesmo a recusar um funeral cristão aos cavaleiros mortos em torneios. (Inocêncio II, no concílio de Latrão II, 1139, proibição que só foi levantada em 1316, pelo Papa João XXII).
Também vários reis e príncipes introduziram-lhes limitações e regras, sendo uma delas a proibição da participação de estrangeiros.
Mas como escreveu certo cronista “um cavaleiro não pode brilhar na guerra se não se tiver preparado nos torneios”.
Numa sociedade em que as distracções eram limitadíssimas e ao alcance de muito poucos, podemos imaginar o impacto visual, e também emocional, que teria o desfile de algumas centenas de cavaleiros dirigindo-se para o local do torneio, armados dos pés à cabeça coberta pelo elmo, e que montados nos seus cavalos de guerra ajaezados para tal, se distinguiam uns dos outros, apenas pelos brasões de família pintados nos seus escudos.
A partir do sec. XIII passam também a existir as “justas”, um duelo individual realizado em campo fechado e ladeado por tribunas onde ficavam os espectadores, e que pouco a pouco substitui definitivamente o torneio. O espectáculo continua ser brilhante e festivo, embora não tão mortífero.
Mais do que qualquer outro homem da Idade Média, o cavaleiro é filho da sua época. Aparece quando ela se inicia e desaparece com o seu término. Mas o seu ideal e o seu charme permanecem através dos tempos…

Fontes:
Grinberg, Carl - História Universal
Selecções do Reader’s Digest – Ao encontro do passado
História Viva, nº 26
Imagem: pliniocorreadeoliveira.info


quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Torneios Medievais – I


Num certo dia de 1180, ao pôr-do-sol, dir-se-ia que nos campos de Lagny-sur-Marne se tinha acabado de travar uma batalha. O terreno estava juncados de cadáveres, o sangue ensopava a terra e ouviam-se os gritos e gemidos dos feridos…
Mas na verdade, todo aquele aparato era o resultado de um dos mais deslumbrantes acontecimentos a que se poderia assistir na Idade Média: um torneio medieval!
Inventados na França, por volta do ano de 1060, em breve se estenderam a outros países, especialmente à Inglaterra, onde alcançaram o seu máximo esplendor durante o tempo dos reis cavaleiros, Henrique, o Jovem, Ricardo, Coração de Leão, e o irmão de ambos, Godofredo Plantageneta. Aberto também a escudeiros, o torneio permitia-lhes aperfeiçoarem-se nas armas, para mais tarde, talvez, poderem ser elevados a cavaleiros andantes, e para aqueles que já o eram, a possibilidade de encontrarem um grande senhor que os arregimentasse, ou um bom casamento.
Por serem muito dispendiosos, eram apenas convocados pelos ricos herdeiros dos grandes senhores feudais, que se desafiavam mutuamente, e os únicos que tinham dinheiro suficiente para poderem arregimentar e manter estas hostes numerosas de cavaleiros errantes.
Passatempo predilecto dos cavaleiros em tempo de paz, servia-lhes de treino para a prática da guerra, mas, ao contrário desta, era encarado como um desporto colectivo, codificado, onde os participantes eram voluntários, e os “pedidos de tempo” eram admitidos, para que homens feridos ou cansados pudessem abrigar-se dos ataques em refúgios invioláveis. Servia, às vezes, também, para no calor do enfrentamento, se praticarem actos de vingança pessoal, que todavia, eram condenados.
Tão violentos, perigosos e brutais como as batalhas, eram travados em campo aberto ou nos arredores de uma cidade, durante vários dias, onde duas hostes de combatentes “inimigas”, (que incluíam cavaleiros, escudeiros, arqueiros e infantes), disputavam esse espaço. Não era obrigatória a igualdade das forças em campo e nem todos combatiam a cavalo. Eram permitidos ataques frontais ou não, emboscadas ou simulações de fuga. Também não era condenável, que um grupo de homens perseguisse um adversário que se encontrasse isolado.
Obedeciam às regras estabelecidas pelo Código da Cavalaria, mas quando a carga degenerava naquilo a que se chamava uma mêlée, com cavaleiros rodopiando, uns ainda montados e outros já a pé, alguns esmagados pelos cascos dos cavalos, ou sufocados no interior dos elmos amolgados e braços decepados por espadeiradas desferidas às cegas, então o desportivismo podia degenerar rapidamente numa fúria sangrenta.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Um Conto de V. Woolf


Uma Casa Assombrada

A qualquer hora que uma pessoa acordasse havia uma porta a fechar-se. De quarto em quarto, lá iam eles, de mãos dadas, levantando aqui, abrindo ali, certificando-se…um casal de fantasmas.
- Deixámo-lo aqui – disse ela.
E ele acrescentou: Ah, mas aqui também!
- Está lá em cima – murmurou ela.
- E no jardim – sussurrou ele.
- Devagarinho – disseram ambos -, senão vamos acordá-los.
Mas não, não nos acordavam.
- Andam à procura; estão a afastar a cortina – poderia a pessoa dizer e, depois, continuar a ler mais uma ou duas páginas. – Agora é que encontraram – diria, cheia de certezas, detendo o lápis na margem. E depois, cansada de ler, poderia levantar-se e ir ver com os próprios olhos, a casa toda vazia, as portas abertas, só os pombos a arrulhar contentes ao ritmo do zumbido da debulhadora que vinha da quinta.
- Porque vim para aqui? O que queria encontrar? - As minhas mãos estavam vazias. – Estará lá em cima, talvez? – No sótão estavam as maçãs. Portanto, de novo para baixo, o jardim em sossego, como sempre, só o livro havia deslizado para a relva.
Mas eles tinham encontrado na sala o que procuravam. Não que alguém alguma vez pudesse vê-los. As vidraças reflectiam maçãs, reflectiam rosas; no vidro todas as folhas eram verdes. Se eles cirandavam pela sala, a maçã só virava o seu lado amarelo. Porém, no instante seguinte, se a porta se abria, espraiava-se pelo chão, pairava nas paredes, pendia do tecto…o quê? As minhas mãos estavam vazias. A sombra de um tordo cruzou a carpete; dos poços mais fundos do silêncio, o pombo soltou o seu arrulho.
- A salvo, a salvo, a salvo, - batia docemente a pulsação da casa. – Enterrado, o tesouro; o quarto… - a pulsação parou subitamente. Oh, era aquilo o tesouro escondido?
Instantes depois a luz tinha esmorecido. Estará talvez lá fora no jardim? Mas as árvores teciam trevas para um raio errante de sol. Tão sublime, tão raro, frio e mergulhando abaixo da superfície, o raio que eu procurava estava sempre a arder atrás do vidro. A morte era o vidro; a morte estava entre nós, chegando primeiro à mulher, muitos séculos antes, abandonando a casa, selando todas as janelas; os quartos ficaram às escuras. Ele deixou a casa, deixou-a a ela, foi para o norte, foi para o leste, viu as estrelas rodar no céu do Sul; procurou a casa, encontrou-a abandonada sob as colinas dos Downs.
- A salvo, a salvo, a salvo – batia alegremente a pulsação da casa. – O Tesouro…vosso.
O vento ruge na alameda. As árvores inclinam-se e pendem para aqui e para ali. Raios de lua esparrinham e chapinham na chuva como loucos. Mas o raio de luz do candeeiro cai a eito da janela. A vela arde imóvel e imutável. Vagueando pela casa, abrindo janelas, em surdina para não nos acordar, o casal de fantasmas procura a sua felicidade.
- Dormimos aqui – diz ela.
E ele acrescenta: - Beijos sem conta.
- Acordar de manhã…
- A prata entre as árvores…
- Lá em cima…
- Quando chegava o Verão…
- O Inverno é tempo de neve…
As portas fecham-se ao longe, batendo suavemente como o pulsar de um coração.
Eles aproximam-se, param à porta. O vento abranda, a chuva escorre prata pelos vidros. Os nossos olhos ensombram-se, não ouvimos passos ao nosso lado; não vemos nenhuma senhora estender sua fantasmagórica capa. As mãos dele protegem a lanterna.
- Olha – diz ele num sussurro. – Dormem profundamente. Com o amor nos lábios.
Inclinados, seguram a candeia prateada por cima de nós, olham-nos longamente, profundamente. Pausam, longamente. O vento sopra a eito; a chama inclina-se levemente. Raios desgarrados de luar cruzam o chão e a parede, e, encontrando-se, mancham os rostos inclinados; rostos perscrutadores; rostos que examinam os entes adormecidos em busca da felicidade escondida.
- A salvo, a salvo, a salvo – bate o coração da casa com orgulho. – Tantos anos…diz ele, suspirando. – E encontraste-me outra vez.
- Aqui – murmura ela -, dormindo; lendo no jardim; rindo, virando maçãs no sótão. Foi aqui que deixámos o nosso tesouro…
Inclinados, a sua luz abre-me as pálpebras.
A salvo! A salvo! A salvo! – bate loucamente a pulsação da casa. E eu, acordando, exclamo: - Ah, então é este o vosso tesouro enterrado? A luz do coração.

Virgínia Wolf – Biblioteca de Verão do Diário de Notícias

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A Trégua de Deus


A desagregação do Império Romano e as invasões bárbaras criaram uma onda de violência de que as populações foram as principais vítimas.
A situação melhorou um pouco com o reinado de Carlos Magno, mas depois da morte deste, o desmembramento do seu império conduz ao declínio do poder central e à formação de novas entidades políticas: os principados.
Estes príncipes fossem eles duques ou condes, consideram-se soberanos “autónomos” no seu próprio território e cercam-se de uma hoste armada (as milites, que logo serão chamados de “cavaleiros”). Contestam antigas doações, espoliam e queimam as terras da igreja, pilham os próprios mosteiros atraídos pelas suas riquezas, raptam contra resgate, e, quando não havia torneios ou batalhas, guerreavam entre si ou por vingança, ou pela posse das terras, semeando o terror entre as populações que lhes sofriam os efeitos. Para agravar a situação, entre 1030 e 1040, a Europa sofreu toda a casta de provações, de que resultou profunda miséria, que, durante anos, assolou as populações.
Face a esta insegurança, a Igreja, principalmente a de França, onde a situação era pior, avança com um movimento de reforma espiritual, procurando conter os numerosos abusos praticados, baseados na lei do mais forte. Procurava também, transformar as igrejas e mosteiros em locais de asilo, onde a violência não poderia entrar, e moderar as actividades militares.
Para isso, avança com dois movimentos ideológicos: a “Paz de Deus”, que nasce em Puy, no ano de 900, onde se proíbe o ataque às populações desprevenidas e aos bens da Igreja, e, mais tarde, pelo concílio de Elne, em 1027, a “Trégua de Deus”, interditando a acção guerreira entre sexta-feira e segunda, em comemoração do tempo pascal, vindo a ser promulgados pelo Papa em 1095.
Era este o juramento que os senhores tinham de prestar:
1 – Não invadirei, por forma alguma, a igreja; não forçarei os celeiros situados em volta da igreja, em virtude da protecção que lhe é devida...
2 – Não assaltarei clérigo ou monge que não trazem armas seculares, nem aquele que os acompanha sem lança nem escudo, nem lhes roubarei o cavalo, a não ser que tenham cometido alguma falta pela qual tenha motivos de queixa…
3 – Não roubarei nem boi, nem vaca, nem porco, nem ovelha, nem cabrito, nem cabra, nem burro, nem a carga que este leva, nem égua nem poldro por adestrar…
4 – Não prenderei camponês ou camponesa, nem agentes da ordem ou mercadores, nem lhes roubarei o dinheiro, exigirei resgate ou lhes apreenderei os haveres, nem os fustigarei para lhes apanhar seus bens…
5 – Não tomarei pela força nem mula, nem macho, cavalo, égua ou poldro nas pastagens, desde o primeiro dia de Março até à Festa de Todos-os-Santos (Período do ano em que os animais estão nos campos), salvo se achar que me fazem mal…
6 – Não incendiarei nem destruirei casas…
7 – Não cortarei, nem arrancarei, nem vindimarei as vinhas de outrem sob pretexto de guerra, a não ser que elas se encontrem nas minhas próprias terras…
8 – Não destruirei o moinho e não roubarei o trigo que nele se encontrar, a não ser que eu esteja em missão ou integrado numa hoste e que isto suceda nas minhas terras…
9 – Não protegerei nenhum conhecido salteador de estradas…
10 - Não assaltarei nenhum negociante, nem peregrino, e não me apossarei dos seus bens, a não ser que aqueles estejam em falta…
11 – Não matarei os animais dos aldeões, a não ser por necessidade minha ou dos meus. Não roubarei um vilão nem lhe tomarei perfidamente os bens por ordem do seu senhor.
12 – Não assaltarei as mulheres nobres cujos maridos estejam ausentes, nem aqueles que as acompanhem…
13 – Não tomarei o vinho de quem o leva num carro, nem os bois que o puxam…
Este texto diz muito do que eram os costumes feudais na época…
Os que jurassem a “Trégua de Deus”, tinham o perdão dos seus pecados, quem não a jurasse, seria excomungado. Numa época em que o medo das penas do Inferno era intenso, esta atitude da Igreja permitiu que se desenvolvesse um espírito mais nobre, associando à guerra considerações morais e religiosas, que, pouco a pouco, acabarão por se impor.

Fontes: Grinberg, Carl – História Universal
O Tempo dos Cavaleiros – Colecção O Homem e a História, ed. Pergaminho.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Vincent Van Gogh – III


Neste asilo onde passou cerca de um ano, e embora as condições não fossem boas, era-lhe permitido pintar nos momentos de lucidez. A região do asilo possuía muitas searas de trigo, vinhas e olivais, que se transformaram na principal fonte de inspiração para os cerca de 150 quadros que ali pintou com um colorido alegre e pinceladas ondulantes e espiraladas, como em “Os Ciprestes” (que se tornam quase uma obsessão), ” Campo de trigo com Ciprestes,” ou em “A Noite Estrelada”,
uma das suas obras-primas, e talvez a mais estranha, porque neste quadro o pintor não se baseia na observação directa da Natureza, mas apenas na sua fantasia.
A pintura era uma actividade que o ligava à vida, pois durante as suas depressões, que duravam geralmente de duas a quatro semanas, onde sofria de alucinações terríveis, seguidas de sonolência e apatia, era-lhe impossível qualquer actividade normal. Embora tivesse aprendido a aceitar a sua doença, a convivência com os outros doentes mentais era-lhe extremamente penosa.
Depois de uma das suas crises, começa a pintar repetições de alguns dos seus quadros, sendo um deles “O Meu Quarto em Arles”, abaixo apresentado.
Em Janeiro e Fevereiro de 1890, acontecem várias coisas boas: nasce o filho de Theo que ele apadrinha e para quem pinta “Amendoeira em Flor”, aparece numa revista de arte um artigo sobre ele, apresenta algumas das suas obras numa exposição em Paris e consegue vender em Bruxelas um dos seus quadros.
Talvez devido a tantas emoções, sofre em Maio de 1890 uma violenta crise e Theo leva-o para Paris, instalando-o em Auvers-sur-Oise, aos cuidados do Dr. Gachet, que além de médico era pintor amador. Tinha-lhe sido recomendado por Camille Pissarro, era um homem amável e depressa se tornam amigos.
Começa novamente a pintar, mas as suas pinceladas, que sempre tinham sido vigorosas, tornam-se agora frenéticas e as cores tornam-se mais baças. Só o trabalho o faz esquecer a doença e nos setenta dias que passa em Auvers, pinta mais de oitenta quadros.
Esta felicidade dura pouco. Theo passa por graves dificuldades económicas o que arrasa Van Gogh, consciente do facto de depender economicamente do irmão e ainda por cima, zanga-se definitivamente com o Dr. Gachet, ficando assim sem o seu último amigo.
Num dos seus últimos quadros, “Campo de trigo com corvos”, em que a extensão e a simplicidade dominam, o pintor exprime toda a sua tristeza e profunda solidão. Sentia que falhara em tudo…
Na tarde de 27 de Julho de 1890, saiu a passear pelos campos e deu um tiro no peito com um revólver. Ainda teve forças para se arrastar até à pensão onde morava, morrendo dois dias mais tarde, nos braços do seu irmão Theo.
“Está visto que só podemos fazer falar os nossos quadros”, escreveu ele um dia. Os seus quadros falavam por ele, mas ninguém os compreendeu…


Fontes: www.wikipedia.pt
História da Arte, vol. 8
Whalter, Ingo F. – Van Gogh