quinta-feira, 30 de maio de 2013

A Fogueira de Ruão- I

 Gravura de 1505


“Eu vim à terra para cumprir a vontade de Deus”

Um sol resplandecente inunda a  cidade de Ruão nessa manhã de 30 de Maio de 1431, prometendo um magnífico dia de Primavera. Para as cerca de 10.000 pessoas que inundam a praça do Vieux-Marché, o dia doce e quente permitir-lhes-á apreciar em pleno o espectáculo que se avizinha.
Um raio desse mesmo sol invade a sombria câmara do Castelo de Bouvrenil onde Joana d’Arc, a Donzela de Orleães, aguarda a sua sentença. Quando os dois monges dominicanos enviados pelo implacável Bispo de Beauvais chegam, os três guardas que permanentemente vigiam a prisioneira, saem da cela.
O irmão Martin Ladvenu e o irmão Jean Tout-Mouillé informam Joana que irá ser purificada pelo fogo, morrendo na fogueira como uma bruxa. Até aí serena e calma, a jovem tem uma crise nervosa. Chora, grita, arrepela-se, apela a Deus pela injustiça de que irá ser vítima. Os monges tentam acalmá-la, mas em vão
Por fim, esgotada, Joana cede e pede para se confessar e comungar. Os dominicanos aceitam ouvi-la em confissão mas não têm nenhumas instruções quanto à comunhão. Mandam o meirinho Jean Massieu pedi-las ao bispo, que envia um padre com uma hóstia.
Pouco depois, o próprio bispo entra na cela e Joana ao vê-lo exclama:
- Bispo, morro por vossa causa!
Depois da comunhão, saem todos menos os dois monges e o meirinho. Depois de vestir o traje que a Inquisição reserva para os seus condenados, o meirinho e o irmão Martin Ladvenu sobem com ela para a carroça que os levará do castelo ao local do suplício. São nove horas da manhã.
Mantém-se de pé na carroça, escoltada por oitocentos soldados ingleses que afastam a multidão que desde a alvorada se comprime pelas ruas para a ver passar.
Rezam e choram ouvindo os gritos que Joana lança da carroça:
- Ruão, Ruão, é então aqui que devo morrer?
Os ingleses estão nervosos, tudo pode acontecer. Nicolas de Houppeville, que se tinha recusado a continuar no julgamento, ouve-a lançar este grito, possivelmente para agitar a multidão.
Na praça, três estrados estão montados; no primeiro, destinado à Igreja, encontram-se o cardeal Winchester, os bispos de Beauvais, de Noyon e de Norwick, os cónegos, os doutores, uma mancha de púrpura, violeta e arminho; no segundo, destinado aos representantes do poder público estão o bailio de Ruão e os seus colaboradores; no terceiro, sentar-se-ão a Donzela para escutar a sentença e um pregador, Nicolas Midi.
Um pouco mais afastada, está a fogueira, colocada num nível superior, graças a um pedestal de gesso, onde assentam os molhos de lenha e o poste, para que todos possam verificar a morte da Donzela, sem que fiquem margem para dúvidas… A encimar o poste, uma inscrição em grandes letras:
“Joana, que se fez conhecer pela Donzela, mentirosa, perniciosa, abusadora do povo, blasfemadora de Deus, dissoluta, apóstata, cismática, idólatra, invocadora de diabos e herética”.
O pregador, durante mais de uma hora, falou sobre o tema da palavra de S. Paulo: ”Se um membro sofre, todos os membros sofrem”. O bispo Cauchon dirige-se pela última vez a Joana, dizendo-lhe:
- Todas as vezes que o vírus pérfido da heresia se pega a um dos membros da Igreja e o transforma em servidor de Satanás…….
……Nós te declaramos herética e relapsa…Deves ser banida da Igreja, deves ser entregue ao poder secular…Pedimos a esse poder secular que seja moderado contigo na sua sentença…
Lêem-lhe então a sentença de relapsa, proferida contra ela no dia 24de Maio, mas os Ingleses começam a ficar impacientes.
- Eh, padre, vai fazer-nos jantar aqui? – grita um soldado inglês para Jean Massieu.
A um gesto, dois ingleses agarram Joana e arrastam-na para a fogueira, ao mesmo tempo que os prelados abandonam o seu estrado. É amarrada ao poste e sobre a cabeça colocam-lhe uma espécie de mitra, tipo orelhas de burro, onde está escrito “herética, relapsa, apóstata, idólatra”, mas contra o que é habitual não foi amordaçada. O carrasco pega então fogo à palha e aos molhos de lenha colocados na base da fogueira. Um fumo acre rodeia a condenada que pede ao padre Ladvenu que ainda está junto dela, para que desça. Segura uma cruz de madeira que um soldado inglês lhe deu, movido pela compaixão. Um padre segura uma cruz alta diante do rosto de Joana, que reza invocando os seus santos.
As chamas e o fumo escondem-na dos olhos da multidão que apenas ouve as suas orações, mas a sua agonia é lenta e terrível, porque o carrasco, devido à altura a que está o poste, não a pode “piedosamente” estrangular como era costume fazer-se aos que morriam na fogueira reconciliados com Deus.
Por fim, de entre as labaredas que rodeiam o poste, ouve-se um grito “Jesus!” e o silêncio cai.
Logo que Joana solta o seu último suspiro, o fogo foi abrandado para que os assistentes a possam ver morta,
“Apareceu então, direita e escura (carbonizada). Foi vista por todo o povo completamente nua e mostrando tudo o que pode haver de secreto numa mulher, para com isso tirarem todas as dúvidas ao povo”. Depois do que, “o carrasco voltou a lançar o fogo ao seu pobre cadáver, que depressa foi completamente consumido e, ossos e carne, tudo foi reduzido a cinzas”.
As cinzas foram recolhidas e por ordem dos Ingleses, deitadas ao Sena, de cima da ponte Mathilde.
Assim morreu aos 19 anos de idade, Joana, a doce pastora da Lorena, a quem um rei ficou a dever a coroa.  

Fontes: O processo de Joana d’Arc – colecção Grandes Julgamentos da História.
Imagens: www.wikipedia.org
  


Joana d’Arc é queimada viva – Jules-Eugène Lenepveu.


quarta-feira, 29 de maio de 2013

A Queda de Constantinopla – II

Constantino XI


A Batalha Final


No silêncio sepulcral que a seguir reinou nos dois lados, milhares de pessoas ao abrigo das muralhas milenares, esperavam angustiadas pelo dia e pela morte.
E de repente cem mil tomruks começaram a tocar e o canhão, o Basilisco, rugiu. Uma só vez. Era uma hora da manhã...Mehmed II tinha dado a ordem de ataque.
Num ápice, 50.000 homens precipitam-se para as muralhas, munidos de escadas, cabos e arpéus, correndo na escuridão, sabendo que não poderão recuar pois atrás de si levam uma fileira de janízaros com ordem para matar os que tentassem escapar. Eram simples basibozuks, andrajosos, desprotegidos, mercenários de várias nacionalidades misturados com escravos cristãos que os Turcos lançavam para minar as forças dos sitiados. Por duas vezes as suas vagas se lançaram ao assalto e por duas vezes foram repelidas.
Após duas horas de luta avançam os guerreiros da Anatólia, uma força de cavalaria disciplinada e bem equipada, envolvidos por brilhantes capas de seda e protegidos com couraças, seguidos por corpos de infantaria, tropas fisicamente bem retemperadas, ao contrário dos sitiados que combatendo ininterruptamente com as armaduras completas vestidas, saltando sem cessar de uma posição de ataque para outra, se encontram quase esgotados pelo cansaço. Mesmo assim, galvanizados na luta pela sobrevivência, repelem novamente todos os assaltos.
Nestas horas de agonia, os defensores já tinham perdido centenas de homens, muitos lutavam feridos e não poderiam aguentar-se muito mais tempo.
Mehmed II sabia-o e não pretende dar-lhes descanso algum. Vendo goradas todas as suas investidas, manda avançar a sua força de escol, 12.000 janízaros, soldados seleccionados do melhor que a Europa conhece, e comandando-os pessoalmente lança-os a uma só voz contra o adversário exausto.
Conhecidos pela sua crueldade implacável, os janízaros nunca fugiam. Quando um deles caía, logo o seu posto era tomado por outro. Cobertos com os gorros turcos, altos chapéus de pano e pele, fortemente armados, investiram de sabre na mão, levando consigo centenas de arcabuzes.
Dentro das muralhas, os combatentes souberam que o pior de todo aquele pesadelo tinha começado. Todos os sinos das igrejas repicam chamando às muralhas todos os que ainda se encontram em estado de lutar, incluindo os marinheiros que estavam nas naus. Homens, mulheres e inclusive crianças, correm a reforçar as brechas abertas nas muralhas constantemente flageladas pelos tiros dos canhões.
Mas nem os janízaros conseguem ascender às muralhas. No fragor da luta, um tiro de arcabuz atinge o líder do exército genovês, o Condottiere Giustiniani, que é levado para a sua embarcação ancorada no Corno de Ouro com ferimentos graves; a sua baixa faz vacilar o moral dos combatentes. O Imperador, que defendia o lado sul, acorre a tomar conta da situação e o ataque é mais uma vez rechaçado. O sultão, mesmo expondo-se às balas, grita aos seus homens que continuem a lutar, cobrirá de ouro o primeiro que subir às ameias e concentra o ataque na torre de San Romano, desfalcada pela saída dos genoveses e por cujas brechas os janízaros se começam a infiltrar.
Constantino XI defendia as muralhas que davam para o Vale do Lico, debaixo da enorme pressão dos invasores turcos. Um grupo deles, infiltrando-se pelas brechas da primeira muralha descobriu, aberta, uma das pequenas portas que guarneciam a muralha interior da cidade, a chamada Kerkaporta, que por um incompreensível descuido os sitiados se tinham esquecido de fechar. Embora não tivesse qualquer valor militar, esta porta assim aberta dava acesso franco ao coração da cidade, enquanto em cada brecha, em cada buraco, se amontoavam corpos aos milhares e se lançava das ameias óleo fervente sobre os atacantes.
Milhares de soldados irrompem pela Kerkaporta apanhando os defensores das muralhas completamente desprevenidos. Constantino sabe que a Cidade está perdida e recusando todos os pedidos para se pôr a salvo, atira-se de gládio na mão, juntamente com um punhado dos seus fiéis para o mais aceso da batalha não querendo sobreviver ao seu império…
Quando os Bizantinos se aperceberam da presença dos Turcos dentro da cidade, entraram em pânico. Multidões aterradas dirigiram-se para os portos tentando entrar nas embarcações aí ancoradas, outros procuravam fugir para o interior das terras. Um grande número deles procurou asilo dentro da catedral, pensando que o seu caracter sagrado os pouparia a uma morte violenta.
Mas nas ruas a chacina e o saque tinham começado. Fiel à sua palavra, Mehmed II entregou a “Nova Roma” aos seus soldados reservando para si a glória de a ter conquistado, o que lhe valeu o cognome de Il Fatih (O Conquistador).
Ao fim de três dias a “Rainha das Cidades” não passava de um montão de ruínas. Entrando a cavalo na manhã do quarto-dia, o sultão dirigiu-se à Catedral de Santa Sofia e recitou do altar-mor a prece muçulmana da quarta-feira. Em seguida os operários abateram o altar, cobriram com cal os belos mosaicos que lhe cobriam as paredes e a cruz que encimava a cúpula foi quebrada sendo substituída pelo crescente.
A mais bela igreja da cristandade tornara-se numa mesquita. O Império Bizantino deixara de existir e Constantinopla passou a chamar-se Istambul.
Tal como o grão de areia da história, Kerkaporta, a porta esquecida, foi decisiva para a História Universal.