domingo, 31 de março de 2013

PROCISSÃO


Tocam os sinos da torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Mesmo na frente, marchando a compasso,
De fardas novas, vem o solidó.
Quando o regente lhe acena com o braço,
Logo o trombone faz popó, popó.

Olha os bombeiros, tão bem alinhados!
Que se houver fogo vai tudo num fole.
Trazem ao ombro brilhantes machados,
E os capacetes rebrilham ao sol.

Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Olha os irmãos da nossa confraria!
Muito solenes nas opas vermelhas!
Ninguém supôs que nesta aldeia havia
Tantos bigodes e tais sobrancelhas!

Ai, que bonitos que vão os anjinhos!
Com que cuidado os vestiram em casa!
Um deles leva a coroa de espinhos.
E o mais pequeno perdeu uma asa!

Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Pelas janelas, as mães e as filhas,
As colchas ricas, formando troféu.
E os lindos rostos, por trás das mantilhas,
Parecem anjos que vieram do Céu!

Com o calor, o Prior aflito.
E o povo ajoelha ao passar o andor.
Não há na aldeia nada mais bonito
Que estes passeios de Nosso Senhor!

Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Já passou a procissão.

Letra de: António Lopes Ribeiro
Intérprete: João Villaret

Feliz Páscoa!
Imagem:piratasdascaraibas.blogspot.com

sábado, 30 de março de 2013

PIETÀ

Pietà- Salvador Dali




De todas as imagens que ilustram a Semana Santa, para mim a mais dramática e comovente, é sem dúvida a de Maria abraçando o corpo morto do Seu Filho. Toda a agonia da infinita dor de uma Mãe perante a perda consumada está expressa no Seu rosto e num mundo cada vez mais em convulsão, quantas Pietà não estarão chorando…
As primeiras Pietà surgiram em finais do século XIII na Alemanha, expandindo-se depois para outras regiões da Europa ao longo da Idade Média, expressando-se frequentemente tanto na escultura como na pintura. Aparentemente, as imagens medievais eram destinadas à contemplação mística dos fiéis, permitindo que o devoto se sentisse presente no momento pungente da descida de Jesus da Cruz e da entrega do Seu corpo a Maria.
Nesse sentido, a Pietà era uma imagem de devoção como o crucifixo, e por isso era representada isolada de outros personagens da Paixão de Cristo. Com o passar do tempo começaram a surgir representações de Maria e Jesus morto acompanhados por José de Arimateia, Nicodemos, Maria Madalena e outros personagens, a que os historiadores de arte deram o nome de Lamentações de Cristo.
Apesar de a Pietà mais conhecida ser a de Miguel Angelo, esculpida em 1499 e localizada no interior da Basílica de S. Pedro, em Roma, achei por bem apresentar hoje imagens de artistas mais modernos para acompanhar o belíssimo poema de um dos meus poetas preferidos, Miguel Torga.


Pietà

Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado,
Da pedra e da tristeza, no teu canto,
Comigo ao colo, morto e nu, gelado,
Embrulhado nas dobras do teu manto.

Sobre o golpe sem fundo do meu lado
Ia caindo o rio do teu pranto;
E o meu corpo pasmava, amortalhado,
De um rio amargo que adoçava tanto.

Depois, a noite de uma outra vida
Veio descendo lenta, apetecida
Pela terra-polar de que me fiz;

Mas o teu pranto, pela noite além,
Seiva do mundo, ia caindo, Mãe,
Na sepultura fria da raiz.

Miguel Torga in (Poesia Completa)


Pietà - Paula Rego

Pietà - Botero

sábado, 23 de março de 2013

Dia Mundial da Árvore e da Floresta



Comemorou-se no dia 20 deste mês o Dia Mundial da Árvore e da Floresta e numa altura em que florestas inteiras são desbravadas sem nenhum respeito pelo meio ambiente e árvores seculares caem sob o machado do homem para se fazerem barragens, campos de golf, complexos residenciais, etc., lembrei-me de um poema antigo de Júlio Dinis escrito em 1867, mas que se mantém actual:

O Carvalho da Floresta

Havia na floresta um roble cheio de anos,
Vestido de hera anciã, decano entre os decanos
Dos bosques do arredor. Raízes colossais
Prendiam-no à terra; ao ar descomunais
Os braços elevava, e ao vê-lo assim dir-se-ia
Que aos outros vegetais as bênçãos estendia.
Velho, e ainda a primavera o vinha requestar,
O outono desfolhava-o em último lugar;
Opunha ao sol do estio a fronte espessa e bela;
Respeitava-o no inverno o raio da procela.
Viu passar gerações após gerações
Em risos e em pranto, em festas e orações;
Viu crianças pedir-lhe a sombra grata e amena,
Que, amantes ao depois, naquela mesma cena
Viu a falar de amor, e no seu tronco abrir
Duas iniciais que liam a sorrir;
E mais tarde ainda os vira, velhos, encanecidos,
Pedir-lhe em vão alento aos lânguidos sentidos,
A repousar ali. A coma erguida ao céu
De longe se mostrava envolta inda no véu
De névoas da distância. Ao regressar à aldeia,
Ansiava o lavrador por avistá-lo, e a ideia
De tudo quanto amava o vinha comover;
Do lar, do velho pai, dos filhos, da mulher,
Que olhos de tanto amor, de penas e esperanças
Lhe enviavam também saudosas as crianças
Ao deixarem a casa, a pátria, irmãos e mãe
Indo tentar porvir por esse mundo além!
Em que tempos nascera esta árvore gigante?
Que época viu crescer o arbusto vacilante,
Curvando-se por terra a cada viração,
Esse que já não teme ameaças do vulcão?
Quem o pode dizer? Nas trevas se envolvia
A infância do colosso. E quando acabaria?
Que audaz raio do céu, que convulsão fatal
Por terra lançará o enorme vegetal?
Mas, aí, o que a tormenta e o tempo não consomem,
Muitas vezes destrói a ousada mão do homem.
Em vão a tempestade incólume o deixou:
O golpe de um machado um dia o derrubou,
E ao braço do homem cai, dos homens o amigo.
Ouvi a narração do caso, que eu prossigo.
É pela madrugada! Hora que a amar induz,
Todo é verdura o campo, o céu é todo luz,
O roble colossal no tronco encarquilhado
Sente a seiva girar. Das aves o trinado
Se ouve na espessa copa, e ao festival clamor
Respondem num sorriso a borboleta e a flor.
Como um velho entretido e a ouvir cantar os netos,
Que lhe passam nas cãs os dedos desinquietos,
Assim ele também, vulto austero e senil,
Se compraz a escutar a música de Abril,
Os trinos e o bater das asas na folhagem,
A turba jovial, da infância alada imagem.
De súbito cessou das aves o cantar;
Param, olham com medo o chão, o bosque e o ar,
No seio da floresta um som vago se escuta,
Como o rugir do mar quando nas praias luta.
O roble estremeceu, ouvindo: - “Que será?
- Que sinistro rumor é este?” – Perto já
Se distingue melhor. É um travar de vozes
De alguns homens do campo, alegres e velozes.
O roble sossegou, e às aves disse assim:
-Podeis ficar sem medo aqui ao pé de mim,
-São amigos que vêm, pobres trabalhadores,
-Sobre quem eu estendo os ramos protectores,
-Quando, durante a sesta, o sol ardente cai.
-Aves, não receeis. Amigos são, cantai!
-Vede, pararam já. Tenta-os a fresca selva,
-O machado, o alvião pousaram sobre a relva,
-Vão descansar decerto. Ergueram para aqui
-O olhar; a gratidão bem claro nele vi.
-Cantai, aves, cantai nos ramos da floresta,
-Enquanto eu lhes protejo a procurada sesta.”
Assim disse o carvalho às aves, mas em vão,
Que nenhuma a cantar inda se atreve então,
Ou, se alguma o tentou, emudeceu no meio,
Que só para gemer lhe deu vigor o seio;
Parecem pressagiar um vago e oculto mal,
Como quando no céu prevêem temporal.
Mas já ordens se dão; preparam-se os obreiros;
Reparte-se a tarefa: exercem-se ligeiros;
Já está tudo disposto, e pronto a uma voz,
Eis se dá um sinal…rapidamente após,
Dum dos homens do bando o industriado braço
Lança em volta do tronco traiçoeiro laço,
E as aves a tremer!...”Doidas!” assim lhe diz
O velho, sacudindo a secular cerviz;
“Das crianças é este um usual brinquedo:
“Embaladas assim nos braços meus, sem medo,
“Em jogos infantis se aprazem. Não fujais.
“Doidas que sois! Dizei, do que vos receais?
“Vê-las-eis cedo vir, e o peso é tão suave,
“Que me alegra! A criança é pouco mais que a ave.
“Não aves, não fujais, que são vossas irmãs,
“Ligeiras como vós, e como vós louçãs!!”.
Fez-se ouvir de repente um som rápido e seco,
Que teve na floresta um temeroso eco.
O tronco estremeceu. As folhas sem vigor
Caíram pelo chão, quais lágrimas de dor.
As aves a gemer, das frondes sacudidas
Fugiam em tropel como ilusões perdidas!
No tronco, em fundo golpe, o ferro penetrou;
A árvore, ao senti-lo, um pouco vacilou,
Mas depois disse ainda às pobres andorinhas
Ocultas, a tremer, nas árvores vizinhas:
-Foi doloroso o golpe! Útil porém talvez.
O destro rachador derruba muita vez
Algum ramo já velho, inútil, parasita,
-E à fecundante seiva o curso facilita.
-Agora foi mais fundo, e rijo o golpe foi,
-E perto da raiz. Por isso mais me dói!
-Errou talvez ao dá-lo a mão inexperiente,
-O golpe foi cruel. Se foi! mas inocente.
Eis que ao primeiro golpe, um outro se seguiu.
E outro, mais outro e outro; e o eco os repetiu,
E as aves a carpir do velho amigo a sorte.
Não se ilude ele já; ferido pela morte
Falece-lhe o vigor; das achas ao brandir
Vacila, geme, ondeia! É próximo a cair.
Prossegue no entretanto a abominável obra,
Da turba afadigada o vozear redobra,
No íntimo do lenho, o ferro ímpio, cruel,
As fibras despedaça. Os homens em tropel
Arredam-se a distância, a fim que os não esmague
O gigante ao cair e, moribundo, pague
A morte que lhe dão, sacrílega e atroz.
-“À obra, à obra”, então alto soa uma voz,
E todos lançam mão da preparada corda.
A triste ave da noite à vozearia acorda,
Solta um lúgubre pio. Um frémito subtil
Nas folhas passa ao roble. A brisa foi de Abril
Que veio ali dizer-lhe a extrema despedida?
Beijá-lo a última vez, saudosa e comovida?
Oscila, geme ainda, estala-lhe a raiz,
Solta como estertor de morto. Ouvis?...Ouvis?
Inclina-se para a terra, em queda suave, lenta,
Desce…Desce e, descendo, a rapidez aumenta.
Até que com fragor na relva ao longe cai
O roble secular! Homens, folgai! folgai!
Retumba na floresta o som que fez na queda,
O fragor do trovão nos mares arremeda,
E as aves, levantando o voo alto e veloz,
Às nuvens vão contar o caso iníquo e atroz;
E com sentido pranto, e em queixas magoadas,
Choram-no pelo bosque as comovidas fadas.
E a obra do Senhor às mãos do homem caiu!
E a vida secular numa hora se extinguiu.
E os obreiros do mal saem dali cantando.
Chega logo depois um turbulento bando
De crianças, que a rir, o tronco sem vigor
Calcam, brincando. E após em práticas de amor,
Voa rápido o tempo a amantes e esposos
Que ali falando vêm. Depois, velhos, saudosos
Do tempo que passou por eles em comum,
Sentam-se a conversar. Mas deles, ai, nenhum
Uma lágrima tem para desgraças destas.
Homens, que mal vos fez o velho das florestas?

Júlio Dinis in “Poesias”.