segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Caravaggio - III

Nossa Senhora do Loreto ou dos peregrinos
Obras
Pequeno Baco Doente (1593-1594) - Baco (1593-1594) - Rapaz levando uma cesta de fruta (1593-1594) - Rapaz com uma garrafa de rosas (1593-1594) - Rapaz descascando uma pêra (1593-1594) - Tocador de Alaúde (1594) - Os Jogadores (1594) - Rapaz mordido por um lagarto (1595) - S. Francisco em Êxtase (1595) - Os Músicos (1595-1596) - Repouso na Fuga para o Egipto (1595-1596) - A Ceia em Emmaus (1596) - A Adivinha (1596-1597) - Madalena Arrependida (1596-1597) - Grande Baco (1596-1597) - Santa Catarina de Alexandria (1598) - Maria censurando Madalena (1598) - Narciso (1598-1599) - Cesto de frutos (1598-1599)
Cabeça de Medusa (1598-1599) - Judith e Holofernes (1599) - Retrato de Monsenhor Maffeo Barberini (1598-1599) - A Vocação de São Mateus (1599-1600) - S. João Baptista (1599-1600) - A Prisão de Cristo (1602)
O Amor triunfante (1602) - A Inspiração de São Mateus (c. 1602) - Martírio de São Mateus (1599-1600) - Crucificação de São Pedro (1600-1601) - O Sacrifício de Isaac (1603) - Conversão de São Paulo (1600-1601) - S. Mateus e o Anjo (1602) - A Deposição no Túmulo (1602-1603)
Nossa Senhora do Loreto (1604-1605) - Nossa Senhora da Serpente (1605-1606) - David com a cabeça de Golias (1605-1606) - S. Jerónimo escritor (1606) - A Morte da Virgem (1606) - Madalena em Êxtase (1606) - Nossa Senhora do Rosário (1607) - Sete Obras de Misericórdia (1607) - A Flagelação de Cristo (1607) - S. João Batista (c. 1607) - Ecce Homo (1608) - O Amor adormecido (1608) - Degolação de S. João Baptista (1608) - Ressurreição de Lázaro (1608-1609) - O Martírio de Santa Úrsula (1610) - Salomé (1610)

Fontes: Os grandes Artistas- Difusão Cultural, 1990.
Wikipédia.org
Pt.wikilingue.com
Lambert, Gilles - Caravaggio - Taschen
Historia Y Vida
Clio, Revista de História, nº 105
Snpcultura.com

Cesto de frutas

Caravaggio - II

Pormenor do quadro David com a cabeça de Golias, Auto-Retrato
Embora muitas das suas telas fossem recusadas, no final do século XVI tornara-se num dos pintores barrocos mais famosos de Roma e o seu estilo original era admirado por alguns dos patronos mais ricos e poderosos da Itália, que as compravam para as suas colecções particulares, como aconteceu com o seu quadro “A Morte da Virgem”.
Actualmente no Museu do Louvre, causou enorme escândalo quando Caravaggio a apresentou. Para a sua execução usou como modelo o cadáver de uma prostituta afogada, grávida e já com a pele esverdeada pelo tempo passado dentro de água. Os pés pendem para fora da cama e está vestida como uma mulher vulgar. Apenas o finíssimo halo dourado à volta da sua cabeça nos dá uma indicação de santidade. Tinha sido encomendado em 1601 para figurar no altar da igreja de Santa Maria della Scala e quando os padres, horrorizados, a viram recusaram-na de imediato. Foi mais tarde comprada pelo Duque de Mântua.
Em “A Ressurreição de Lázaro”, forçou os aterrorizados modelos a pegar num cadáver sob a ameaça de um punhal e diz-se também que o modelo para as suas “Madonas” era a sua amante, uma prostituta chamada Lena, por causa de quem infligiu ferimentos graves num notário, tendo de fugir para Génova.
A natureza-morta foi um dos seus géneros preferidos, dizendo ser necessária tanta habilidade para pintar flores, como para pintar figuras humanas.
A sua vida irregular, cheia de brigas, duelos e prisões, onde numa delas chega a ser açoitado, agrava-se quando em 1606 assassina um nobre durante um jogo de pellacorda, um antepassado do ténis. Preso novamente, foge para Nápoles onde pinta várias telas entre elas dois quadros sobre a Flagelação de Cristo, como se se referisse à sua própria experiência dolorosa em Roma. Segue depois para Malta, onde chega em Julho de 1607, contando com a protecção do Grão-Mestre da Ordem, Alof de Wignacourt, para quem pinta dois retratos e um quadro para a Igreja, “A Decapitação de S. João Baptista”.
Torna-se cavaleiro da Ordem, e fica em La Valetta cerca de cinco meses, pintando uma sucessão de obras sacras e profanas mas ao fim desse tempo, é preso novamente e expulso da Ordem, sendo classificado na acta de acusação como um membro “putridum et foetidum”. Com a ajuda de amigos consegue fugir novamente, desembarcando em Siracusa, onde fica pouco tempo. Dali segue para Messina e em finais de 1609 embarca para Nápoles. Está doente e envelhecido pelas muitas provações, mas continua a pintar. É descoberto pelos seus inimigos que o atacam e abandonam numa rua julgando-o morto, mas sobrevive, ficando desfigurado.
Entretanto, em Roma, os seus amigos tentam obter-lhe o perdão junto do Papa Paulo V. Antecipando-se a essa amnistia embarca numa falua para Porto Ercole, ocupado pelos espanhóis, e que está a um dia de viagem de Roma. Mal desembarca é preso e os seus poucos bens apreendidos. Depois de solto, apercebe-se que o barco tinha partido e, desesperado, deambulou pelas praias sob o sol escaldante de Verão até desmaiar de febre.
Morre a 18 de Julho de 1610, em Porto Ercole, na comuna do Monte Argentario, de malária e completamente na miséria. Quando o perdão finalmente chegou, era tarde de mais.
Num dos seus últimos quadros,” David com a cabeça de Golias”, auto-retrata-se na cabeça melancólica de Golias, expressando o desalento em que viveu os seus últimos anos, e talvez como premonição do seu próximo fim. A expressão de David demonstra compaixão e não triunfo como seria de esperar, ao olhar a cabeça cortada que segura na sua mão…
Foram precisos três séculos para que o esquecimento a que injustamente foi votado tivesse fim e fosse entusiasticamente redescoberto. Por volta de 1920 os trabalhos do crítico Robert Longhi trouxeram-no de novo ao conhecimento do público. Reconhecido como um dos “pais” da pintura moderna, as suas obras foram este ano expostas em várias Galerias de Arte para comemorar o quarto centenário da sua morte.
“No dia seguinte da Renascença, o que começa com Caravaggio, é simplesmente a pintura moderna”. André Berne-Joffroy.

A Morte da Virgem

domingo, 28 de novembro de 2010

Caravaggio - I


“ De Michelangelo de Caravaggio, diz-se indiferentemente tenebroso ou luminista. Esquecemo-lo, mas sem ele, não teria havido Ribera, Vermeer, La Tour, Rembrandt. E Delacroix, Courbert e Manet teriam pintado de outra forma.” Robert Longhi

Comemora-se este ano o 400º aniversário da morte daquele que foi uma das personalidades mais interessantes da história da arte do sec. XVII e também uma das mais controversas. Considerado na altura uma autêntica “ovelha negra”, o seu carácter turbulento que o arrastou várias vezes à prisão, assim como o tratamento pouco ortodoxo que dava às suas pinturas, principalmente as de temas religiosos, contribuíram para que tal como os seus quadros, fosse completamente esquecido após a sua morte. E no entanto, Caravaggio chegou ao auge da fama e os seus polémicos quadros quando recusados pelos seus clientes eram comprados pelos coleccionadores de arte! As trevas, que ele introduziu na pintura envolveram também a sua memória…
Filho de Fermo di Bernardino Merisi, nasceu na Lombardia em 1571, não muito distante da aldeia de Caravaggio, donde a sua família provinha, e cujo nome mais tarde adoptou. O pai era “magister”, isto é, arquitecto decorador de Francesco I Sforza, duque de Milão e marquês de Caravaggio, morrendo em 1577, pelo que o pintor juntamente com os seus irmãos foi criado pela mãe, Lúcia Aratore, com bastantes dificuldades. Aos 12 anos entrou como aprendiz no estúdio do pintor milanês Simone Peterzano, um reputado pintor de Milão. Aos 18 anos parte para Roma onde não lhe foi fácil arranjar trabalho. Para fugir à fome e à miséria vendia quadros pelas ruas, mas acabou por ser hospitalizado talvez com a peste que grassava em toda a península. O seu quadro de “Baco Doente”, um auto-retrato pintado pouco depois de ter alta, mostra-o com as feições ainda debilitadas pela doença. No hospital começou as suas primeiras obras conhecidas, pintadas provavelmente para o prior da instituição, e mais tarde, depois de ter abandonado vários patronos, as suas telas chamam a atenção do cardeal Del Monte, patrono da escola de pintura “Academia de S. Lucas”, que o acolheu durante seis anos.
Foi Del Monte que o levou a frequentar os ambientes cultos e refinados da época, que abandonava pelas tavernas de Roma, onde arranjava os seus modelos e também as frequentes rixas que o tornaram sobejamente conhecido da polícia. Nunca abandonava a sua espada e o seu chapéu de abas largas, de feltro, que eram como a sua imagem de marca.
Viveu na época da Contra-Reforma católica quando a Igreja tentava por todos os meios opor-se às ideias difundidas por Lutero e a Inquisição tinha sido restaurada para acabar com os heréticos. Os duelos foram proibidos, assim como andar armado. Deve ter assistido à morte de Giordano Bruno pela fogueira, mas mesmo assim, desafiou tudo e todos com a sua pintura realista, humana e teatral, aliada ao uso dramático da iluminação. O seu jogo de luzes e sombras, em que o fundo da tela pintado de cor escura, geralmente negro (as trevas), é rasgado pela luz que se reflecte nas vestes, nos objectos, mas principalmente no rosto dos personagens, pintados com todo o realismo, é a principal característica dos seus quadros, onde por vezes as cenas religiosas se revestem de crueldade e violência, bem expressas em “A Decapitação de S. João Baptista” e “Judith e Holofernes”.
Nos seus quadros o mundo mergulhou na escuridão. A sua técnica, chamada de tenebrismo, é desprezada durante toda a sua vida, e aproveitada mais tarde por pintores como Rembrandt, Cézane, Ribera e outros que a desenvolveram. Pintava directamente na tela e apenas se conhece uma assinada por ele.
Os seus primeiros trabalhos conhecidos foram uns quadros sobre São Mateus, recusados pelo cliente por serem considerados imorais. Habituados ao Maneirismo e às cópias de Miguel Ângelo e Rafael, um S. Mateus com pernas grossa e cheias de varizes, incomodava e chocava…
Ao pintar “Baco”, o deus do vinho, com um ar efeminado, indolentemente inclinado com uma taça na mão, e pintado como se fosse uma gueixa oferecendo os seus encantos, rompia com todos os cânones da época, seguindo-se reacções muito duras tanto entre o clero conservador, como entre os nobres e os artistas seus contemporâneos.

Retrato de Caravaggio – Ottavio Leoni

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Origens do Trovadorismo


De òc, a palavra occitana para sim, deriva a língua occitana, também conhecida como langue d’òc ou provençal, uma língua românica falada ao sul da França, nalguns vales alpinos da Itália e no Val d’Aran, na Espanha.
A palavra occitana, provém da região da Occitânea, cujo nome deriva de Aquitânia, que no principio do sec. XII era um ducado governado por Guilherme IX, (O Trovador), Duque da Aquitânia, (1071-1126), o grande impulsionador desta poesia, sendo ele próprio poeta e um dos melhores trovadores da altura, que, caso raro, soube transmitir à sua descendência o seu amor pela cultura. Foi avô de uma das mais famosas mulheres da Idade Média, Leonor de Aquitânia, rainha incontestada dos trovadores, e também ela, trovadora.
Nesta época, a literatura existia apenas nos mosteiros e universidades, assentando a cultura popular na transmissão oral, por isso jograis e músicos, (muitos deles estudantes, que assim angariavam mais alguns proventos), andavam pelas feiras, castelos e cidades cantando poesias que eles próprios compunham, ou então narrativas de feitos históricos ou lendários. Mais tarde, os trovadores (troubadours), na sua maioria de origem nobre, aperfeiçoaram esta arte mais de acordo com os ideais de cavalaria então vigentes, introduzindo-a na Corte com tal sucesso, que até grandes senhores ou mesmo reis compuseram as suas trovas.
O primeiro trovador conhecido foi, como atrás referido, o duque da Aquitânia, mas nomes como Bernart de Ventadorn, Guiraut de Bornelh, Jaufré Rudel, Bertran de Born, Peire Vidal, ou Guiraut Riquier, que na canção de amor, coloca no lugar da dama amada, a Virgem Maria, são alguns dos mais de quatrocentos trovadores conhecidos.
Embora em número muito reduzido, houve também mulheres trovadoras (trobairitz), como a condessa de Die.
Entre as várias formas poéticas praticadas, a mais requintada é a canção de amor (canso), que foi também adoptada por trovadores espanhóis, portugueses, e italianos. Na Alemanha eram chamados de Minnesinger, e praticava-se de tal modo esta poesia, que chegou a organizar-se um grande concurso, por volta de 1200, ganho por Walther von der Vogelweide.
Esta poesia, de natureza amorosa, estava sujeita a um rígido código de comportamento ético, as regras do amor cortês, que de certo modo reproduzem as relações de vassalagem da sociedade feudal e reflectem o ambiente cortesão, embora com os primeiros trovadores se tivesse passado por uma fase mais erótica, em que o servidor chega a atingir o grau de “drutz ou amante”.
Com a cruzada contra os Albigenses, organizada pela Igreja e pelo poder político para conter a crescente influência dos Cátaros no Languedoc, e o estabelecimento da Inquisição, que leva à destruição da maior parte das grandes Casas nobres, os trovadores dispersam-se pelas restantes Cortes europeias, assistindo-se a uma mudança no canto trovadoresco, onde o erotismo dá gradualmente o lugar ao sofrimento e ao desejo insatisfeito. O amor aqui transforma-se num culto, quase uma religião.
Na cantiga de amor, o trovador expressa o seu amor ou o seu sofrimento (a coita), por uma dama geralmente de classe superior, perante a qual se sente vassalo, e á qual presta uma submissão total, uma vassalagem humilde e paciente, obrigando-se à manutenção do segredo da identidade da amada cujo nome disfarçaria através de uma “senha”.Teria também de expressar comedidamente o seu sentimento (mesura), para não incorrer no seu desagrado. A dama, designada por “mia senhor”, é sempre a mais bela das criaturas, tanto de corpo como de espírito, completamente inatingível, e que por vezes exige do amador uma entrega total que no seu limite extremo pode chegar à morte, como por exemplo no caso de Jaufré Raudel.
Estas cantigas podem dividir-se em Cantigas de meestria”, a mais difícil de todas, Cantigas de Tense ou Tensão (diálogo entre dois cavaleiros em tom de desafio), e Cantigas de Plang (cantiga de amor repleta de lamentos).
A veia satírica desta poesia deu origem às cantigas de escárnio e maldizer, que por vezes podiam ser bastante desagradáveis.

Fontes: Wikipedia.org.
Vol. 20, Enciclopédia do Jornal “Público”.
Grinberg, Carl – História Universal, vol.6


domingo, 21 de novembro de 2010

Frei António das Chagas


Poeta português, de seu nome António da Fonseca Soares, nasceu na Vidigueira, Alentejo, em 1631, numa família fidalga. Seu pai era juiz de profissão, e sua mãe irlandesa.
Depois da morte do pai, alista-se no exército, combatendo nas Guerras da Restauração. Durante esta fase, entrega-se a todo o género de aventuras, cometendo excessos de vária ordem, devido ao seu temperamento impetuoso. Obrigado a fugir para o Brasil devido à morte de um seu rival num duelo, é neste período que desperta para a poesia, ficando conhecido por Capitão das Boninas. Em 1656 regressa a Portugal, retoma a carreira das armas, e é promovido a capitão em Setúbal, como reconhecimento do seu valor.
Aos 31 anos abandona a vida militar e ingressa na Ordem de S. Francisco, em Évora, dedicando o resto da sua vida à pregação da Fé, onde ganha grande fama devido ao seu modo pouco convencional de pregar. Teatral e irreverente como o classificou o Padre António Vieira, chegava mesmo a mostrar caveiras, a atirar o crucifixo para cima do auditório, ou a dar bofetadas em si próprio, desde que isso fizesse passar a sua mensagem de uma forma mais clara. Pregou por todo o país, assim como na Corte.
Como poeta, foi bastante conhecido, escrevendo nos mais diversos géneros poéticos: sonetos, madrigais, romances, décimas, glosas e dois poemas heróicos “Mourão Restaurado” e “Canto Panegírico à Vitória de Elvas”. A temática dos seus poemas centrava-se sobretudo na efeméride da vida, nos desenganos a que estamos sujeitos, mas também em assuntos de circunstância. Numa segunda fase, escreveu sermões, elegias, cânticos e cartas espirituais, entre outros. Os seus sermões estão reunidos em “Sermões Genuínos, (1690), e as cartas, consideradas a sua obra-prima, em “Cartas Espirituais”, (1ª parte, 1684; 2ª parte. 1687).
Tratado pelo singelo nome de “o fradinho”, passa a viver desde 1680 no Convento do Varatojo convertido em Seminário Franciscano por sua iniciativa, onde morre em 1682, no mesmo ano em que funda o Convento de Nossa Senhora de Brancanes, em Setúbal, também para formação de missionários franciscanos. Jaz em campa rasa no centro da sala do Capítulo.
É um dos grandes poetas do barroco português do sec. XVII, estando os seus poemas incluídos em quase todos os cancioneiros manuscritos dessa época, nomeadamente nos dois mais importantes. A Fénix Renascida e o Postilhão de Apolo. Na sua fase de religioso, escreveu:
Faíscas de Amor Divino (1683), Espelho do Espírito (1683),Obras Espirituais (1684), Cartas Espirituais (1684 e 1687), Escola de Penitência (1687), Sermões Genuínos (1690), Semana Santa Espiritual, Ramalhete Espiritual (1722).


Deus pede estrita conta de meu tempo.
E eu vou do meu tempo, dar-lhe conta.
Mas, como dar, sem tempo, tanta conta.
Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo?

Para dar minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado, e não fiz conta.
Não quis, sobrando tempo, fazer conta.
Hoje, quero acertar conta, e não há tempo.

Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta!

Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo,
Quando o tempo chegar, de prestar conta
Chorarão, como eu, o não ter tempo...


www.agencia.ecclesia.pt
Enciclopédia do jornal “Público”, vol. 29
Pt.wikipedia.org

sábado, 20 de novembro de 2010

A Tília - II

A sua madeira macia, leve, de cor castanho claro, fácil de esculpir, foi muito utilizada na manufactura de estatuetas religiosas e instrumentos musicais. Andrei Rublev, o famoso pintor russo, utilizava a madeira de tília para pintar os seus ícones. Além disso do romeno ou casca interior da tília, eram feitas umas tábuas finas de madeira, utilizadas como material de escrita, e quando cortado em tiras servia para adivinhação, o que nos leva a outra lenda:
Cronos, o deus Saturno dos romanos, apaixonou-se perdidamente por Philyra ou Filira, ninfa de uma extrema beleza, filha do Oceano e de Tétis, acabando por conseguir seduzi-la. Acontece que Reia, sua esposa, foi procurá-lo e Cronos para não ser apanhado em flagrante delito de adultério e evitar assim a sua ira transformou-se num cavalo. Tempos depois, Phylira teve um filho, metade humano, metade cavalo, a quem chamaram Quíron. Desesperada por ter um filho centauro, abandonou-o e os deuses compadecidos transformaram-na numa tília, a árvore que dava flores e folhas medicinais. Era a deusa do perfume e da escrita, ensinando aos homens o fabrico do papel. Quanto a Quíron, criado por Apolo, a sua fama de médico, sábio e profeta fez com que fosse conhecido por Filho de Philyra (Tília).
Na mitologia eslava, a tília (Lipa) é também considerada uma árvore sagrada e na Polónia há varias aldeias cujo nome é uma derivação de Lipa. Na Croácia, a moeda nacional, a Kuna é dividida em 100 Lipa. Na Hungria, também tem um valor espiritual e cultural e chama-se Hars.
Mas a Tília não entra só na mitologia pagã. Um dos grandes santuários na Checoslováquia, o de Nossa Senhora da Visitação, na fronteira deste país com a Alemanha e a Polónia tem também uma lenda relativa à sua fundação:
Um pobre artesão, necessitando de madeira para trabalhar, pôs-se a caminho à procura dela, deixando em casa a sua pobre mulher doente e uma filha pequenina. Já de regresso, fez um descanso debaixo duma tília e adormeceu. Teve um sonho muito estranho. A árvore iluminou-se e sentados na sua copa estavam dois anjos que lhe disseram: «Tu encontras-te num lugar lindíssimo que agradou a Deus. Vai e traz uma estatueta da Mãe de Deus, para que cada um que por aqui passe no futuro pare e possa agradecer a Deus». O homem acordou, hesitou por um momento e decidiu ir até à próxima cidade para aí comprar a estatueta, e assim cumprir o que os anjos lhe haviam dito. Foi a um entalhador em Zita, comprou a estatueta da Virgem Maria e regressando ao local fixou-a à tília, onde havia estado. Mais tarde trouxe até à tília a sua mulher e filha, para juntos orarem, e a sua família como por milagre foi curada. A notícia sobre o milagre espalhou-se rapidamente. E a este local começaram a afluir peregrinos de longínquas paragens. Em vez da tília foi construída uma capela de madeira, em que o carpinteiro deixou gravada a data da sua construção, 1211. Mais tarde foi construído um convento de franciscanos. A Basílica que hoje lá se encontra foi construída entre 1722/29, sendo ali criado depois da 2ª Guerra, um centro internacional de renovação espiritual, onde todos os anos se realiza uma peregrinação de reconciliação.
A sua longevidade é também lendária. No pátio do Castelo Imperial de Nuremberga havia uma tília que conta a tradição, foi plantada pela imperatriz Cunegundes, esposa de Henrique II da Alemanha, falecida em 1040. Em 1900, embora doente, ainda dava folhas nos três ramos que lhe restavam. Em Baden-Württemberg, na Alemanha, caiu uma tília cuja idade foi calculada em mil anos.
Alta, elegante e perfumada, representa também a graça e a feminilidade, não admirando portanto, que na literatura e poesia tenha sido cantada por poetas e escritores, desde os primeiros trovadores, como Walther von der Vogelweide (1170-1230), que escreveu uma canção “Sob a Tília”, até, Christian Bobin, nascido em 1951 e ainda vivo, que no seu livro “Ressuscitar” comenta:
“A tília em frente da janela é o mestre que escolhi para escrever e sei de antemão que não poderei igualá-lo: nem mesmo os maiores escritores alguma vez escreveram com tanta graça como esta árvore inscreve delicadamente a luz e a sombra em cada uma das suas folhas e renova a sua inspiração a cada segundo
Homero, Plínio, Horácio e Heródoto também escreveram sobre esta árvore e as suas virtudes.
Jan Kochanowski (Sycyna, 1530 - Lublin, 22 de agosto de 1584) foi um poeta renascentista polaco, geralmente considerado o maior poeta do período anterior ao sec. XIX. Um dos seus poemas intitula-se, “A Tília” e diz:
“Peregrino senta-te debaixo da ramagem, descansa;
Eu prometo – sequer o sol selvagem aqui pode avançar.
Porém os raios justos deverão as sombras aquietar nos arbustos.
Aqui sempre sopram brisas frescas do campo,
Rouxinóis e negras aves cantam seu canto.
Abelhas obreiras recolhem mel das flores perfumadas
Para brindar as mesas dos nobres.
E a todos os homens meu murmúrio sereno
Cobre facilmente de adocicado sono…

Goethe, em “Os infortúnios do jovem Werther”, faz enterrar o seu personagem principal debaixo de uma tília.
Conta-se que Mihai Eminescu, o maior poeta romeno, escrevia os seus poemas à sombra de uma, e Samuel Taylor Coleridge, encerrava-se numa pérgola, à sombra desta árvore, a quem dedicou o seu poema “Este Lime-tree Bower, minha prisão”.
Franz Schubert no seu ciclo” Winterreise”, (Viagem de Inverno) de 1827, Opus 89, compôs 24 canções sobre poemas de Wilhelm Müller, sendo uma das mais célebres a 5ª canção, chamada “Der Lindenbaum” (A Tília). Escrita em 1822, conta a história de um caminhante que passando junto a uma tília existente junto ao portão da cidade, onde ele algumas vezes adormeceu e em cuja casca gravou palavras de amor, sente os ramos da árvore chamarem-no, convidando-o a descansar entre eles, o que é tomado como uma insinuação de suicídio. Ele passa de largo, sem olhar para trás, com o vento gelado a bater-lhe na cara, mas muitas horas depois e longe dali, ainda recorda o sussurro dos ramos da tília dizendo-lhe:” Aqui encontrarás descanso”.
Miguel Torga, num dos seus contos, escreve:
"Por lhe ter receitado inalações de flor de tília, o homem cuidou que eu atraiçoava o progresso. E conversámos longamente..”
Termino com um soneto de Florbela Espanca:


A Voz da Tília

Diz-me a tília a cantar: “Eu sou sincera,
Eu sou isto que vês: o sonho, a graça;
Deu ao meu corpo, o vento quando passa,
Este ar escultural de bayadera…

E de manhã o sol é uma cratera,
Uma serpente de oiro que me enlaça…
Trago nas mãos as mãos da Primavera…
E é para mim que em noites de desgraça

Toca o vento Mozart, triste e solene,
E à minha alma vibrante, posta a nú,
Diz à chuva sonetos de Verlaine…”

E, ao ver-me triste, a tília murmurou:
“Já fui um dia poeta como tu…
Ainda hás-de ser tília como eu sou…”


Fontes:pt.wikilingue.com
Abrigodossabios-paulo.blogspot.com
www.czechtourism.com
Grave, Robert - Mitos da mitologia greco-romana
Espanca, Florbela – Sonetos, Bertrand editora
Lipp, Frank J. – O Simbolismo das plantas
Olivrodaareia.blogspot.com

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A Tília - I

Nativa da Europa mas cultivada em todo o mundo, a Tília é uma árvore de grande porte e grande valor ornamental, podendo atingir entre 20 a 40 mts. de altura dependendo da espécie. Pertencendo à família das Tiliáceas, possui bonitas flores brancas, cremes ou amareladas em forma de coração, medindo cerca de 10 cm., que exalam um aroma suave e agradável, muito atractivo para as abelhas. As suas copas frondosas podem atingir os 50 mts. de perímetro e o seu tronco pode alcançar 1,30 mts. de diâmetro. Os frutos são arredondados e de casca acinzentada.
Símbolo da amizade e da fidelidade, é considerada uma árvore sagrada pelas antigas civilizações, que lhe reconheciam qualidades protectoras (afastava o relâmpago e curava quem a tocasse), bem como pela sua longevidade e perfume, tendo várias lendas associadas, sendo uma das mais conhecidas a que conta o seguinte:
No tempo em que os deuses se misturavam com os mortais, Zeus e Hermes resolveram testar a hospitalidade dos homens e foram percorrendo a terra disfarçados de viajantes, pedindo abrigo onde parassem. Mas as portas fechavam-se e encaminharam-se então para a Frígia onde apenas numa cabana muito humilde, habitada por dois velhos puderam encontrar abrigo. O idoso casal era muito pobre, mas dividiram o pouco que tinham com os seus hóspedes, sem saberem quem eram. Como não tinham filhos, viviam um para o outro, tendo por companhia apenas um velho ganso que lhes guardava a casa.
Durante a parca refeição, Filémon e Báucis assim se chamava o casal, notaram com algum temor que o vaso do vinho à medida que se esvaziava enchia-se novamente sem lhe mexerem. Reconhecendo a divindade dos dois homens, pediram humildemente desculpa pela pobreza com que os recebiam e quiseram matar o ganso para prepararem uma refeição melhor… Mas o bicho que não estava pelos ajustes de perder o pescoço depois de tantos anos de trabalho, fugiu e foi esconder-se entre os hóspedes!
Zeus não permitiu que matassem o animal, deu-se a conhecer e convidou-os a segui-lo até ao cimo de um monte. Chegados lá, viram que todo o lugar estava submerso, à excepção da sua pequena cabana que se encontrava transformada num templo.
O deus prometeu conceder-lhes tudo o que pedissem, mas os dois velhos desejaram apenas ser os guardiões daquele templo e não morrer um sem o outro. Os seus pedidos foram aceites e durante o resto das suas vidas que chegou a uma velhice muito avançada, ali viveram. Um dia, estando os dois juntos a conversar, Báucis notou que Filémon se estava a cobrir de folhas, transformando-se num carvalho, e Filémon ficou pasmado ao ver que Báucis se transformava em tília, tendo apenas tempo de se dizerem adeus! O que espantava os visitantes do templo eram verem um carvalho e uma tília nascendo do mesmo tronco…
Para os germânicos representava o infortúnio e a ressurreição, pertencendo à deusa Freya, a Vénus nórdica, chefe das Valquírias e Senhora da magia e da adivinhação. No “Mito dos Nibelungos”, um conjunto de lendas nórdicas e germânicas, Siegfried, o herói, depois de matar o dragão que guarda o anel, banha-se no seu sangue para se torna invencível, mas uma folha de tília ao cair, cola-se-lhe entre as omoplatas impedindo o contacto do sangue com a sua pele, tornando-o vulnerável à lança de Hagen. O seu corpo é enterrado debaixo de uma destas árvores.
É debaixo das suas copas que as fadas aparecem nas noites de Verão sendo também o esconderijo dos duendes. Na antiga Grécia e entre os povos eslavos era a residência da deusa do amor, e na Irlanda diz-se que aquele que adormecer debaixo de uma árvore destas será transportado para a terra das fadas.
Frequentemente plantada em locais de peregrinação ou junto às igrejas, e também em jardins e alamedas, em tempos ainda não demasiado antigos era à sua sombra que se faziam os julgamentos na praça central das aldeias, pois também estava associada à justiça. Ainda hoje é normal verem-se nos centros das povoações. Antes da 1ª Guerra Mundial era costume no Somme, os noivos caminharem debaixo de duas dessas árvores que tivessem crescido juntas, para terem um casamento feliz, e até à 2ª Guerra, a cidade de Berlim orgulhava-se da sua Unter den Linden (Sob as Tílias), uma alameda ornada de filas destas árvores seculares e imponentes. Em inglês o seu nome é Lime tree ou Linden tree, em francês tilleul e em espanhol tilo. São também chamadas de árvores de cal.
Conhecem-se para cima de 30 variedades algumas delas híbridas, mas as propriedades e partes utilizadas são as mesmas em todas as espécies. A Tília é composta quimicamente de óleo essencial, flavonóides mucilagem, ácidos fenólicos), taninos, manganês e vitamina C. As flores e brácteas devem ser colhidas mal comece a floração e secas a baixa temperatura, sendo amplamente usadas em infusões calmantes Uma infusão bem quente de chá de tília constitui um excelente sudorífico (que estimula a sudação), muito recomendado em estados febris, gripes e catarros, especialmente em crianças devido à sua acção levemente calmante e ao seu sabor agradável e adocicado. É um bom calmante do sistema nervoso e muito utilizado em crianças hiperactivas. Tradicionalmente em França, o chá das cinco para as crianças era de tília, tomado à sombra da própria árvore, para que assim o efeito fosse ainda mais eficaz. O mel feito com as flores da Tília é considerado um dos melhores tipos de mel.
É ainda útil no alívio de dores de cabeça e insónias. Combate a arteriosclerose, a tosse, a bronquite, digestões difíceis e cólicas gastrointestinais. Funciona ainda como sedativo, ansiolítico e anti-espasmódico. A casca emprega-se nas infecções hepático-biliares e no combate à celulite.
Dadas as suas propriedades curativas, na Idade Média era utilizada para todas as doenças e já por volta de 1930, o Dr. Samuel Maia, no seu Manual de Medicina Doméstica, dizia que “o chá de tília, agradável e inofensivo, serve nos momentos em que o sentimento ordena aplicar um remédio, sem se saber bem qual escolher”, o que ainda hoje em dia é praticado, pelo menos por quem prefere os produtos naturais.



Fontes: commonswikipedia.org
Jardins, revista nº 61, texto de Fernanda Botelho
Magno, Albino Pereira – Mitologia
Agroatlas.ru
Wikipedia.org
Maia, Samuel – Manual de Medicina Doméstica, Livraria Bertrand


segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Contos Árabes


O Banho de Minchabe
Disseram a alguém quando estava para morrer:
- Diz, não há outro Deus senão Alá
Mas ele pôs-se a dizer:
-É este o caminho para o banho de Minchabe?
Esta frase tem a sua história. Estava um homem parado diante da sua própria casa cuja porta se assemelhava à de um banho. Passou junto dele uma donzela muito formosa que ia dizendo:
- É este o caminho para o banho de Minchabe?
E o homem disse:
- Este é o banho de Minchabe – e indicou-lhe a sua própria casa.
A donzela entrou na casa e ele entrou atrás dela. Mas mal se viu só com ele dentro de uma casa que não era um banho, compreendeu que a enganara traiçoeiramente. Dando-lhe mostras exteriores de alegria e contentamento por estar junto dele na solidão daquela casa, disse-lhe:
- Conviria que tivéssemos aqui connosco alguma coisa de comer e de beber para passar o tempo agradável e tranquilamente.
Ele respondeu:
- Agora mesmo te vou trazer quanto queiras e te apeteça. – E saiu deixando-a em casa sem a encerrar, livre como estava. E tomando o que julgou conveniente para ambos, regressou, e entrou na casa, e viu que a donzela tinha fugido. E não achando rasto dela, o homem enlouqueceu do amor que por ela sentia. Pensando nela constantemente e dominado pela tristeza e pela impaciência, pôs-se a caminhar pelas ruas e as praças dizendo:
- Ah que se eu encontrasse uma mulher que, tendo-se extraviado, perguntava: é este o caminho para o banho de Minchabe?
Passados meses passava numa rua e ia recitando este mesmo verso, segundo o seu costume, quando de uma janela, eis que uma donzela lhe respondeu dizendo:
- E porque não puseste um amuleto na casa quando a tinhas segura ou um ferrolho na porta para que ta conservasse?
Aumentou com isto a sua excitação e a paixão tornou-se mais intensa. E assim continuou até que por fim lhe aconteceu o que já se disse.
Livre-nos Deus das provas e das tentações.
Abú Mohâmed Abde Alhaque
Natural de Sevilha, viveu de 1116 a 1185. O banho de Minchabe constitui uma versão do conto oriental Os Banhos de Zarieb.
Conto retirado do livro Portugal na Espanha Árabe, vol. 1 de António Borges Coelho, 2ªedição, ed. Caminho SA – 1989

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O Dia de S. Martinho


A 11 de Novembro de 397, é sepultado na cidade de Tours, aquele que se tornou o primeiro santo não mártir a receber culto oficial da igreja e um dos mais populares da Europa medieval: S. Martinho, mais conhecido por S. Martinho de Tours.
Nasceu na Sabária, Panonia (actual Hungria), no ano de 316, filho de um tribuno, mas cresceu em Pavia, Itália. Aos 15 anos é integrado no exército estacionado em Amiens, na Gália, onde aconteceu o célebre episódio porque se tornou tão conhecido. Vindo para casa num dia extremamente frio e chuvoso, S. Martinho encontrou um pobre, meio enregelado que lhe pedia esmola. Compadecido, e sem ter mais nada para lhe dar, Martinho corta ao meio a sua capa (clâmide) com a espada, dando uma das partes ao mendigo. Nesse instante, as nuvens dissiparam-se, a chuva parou e o Sol aparecendo brilhante e radioso inundou a Terra de calor!
No dia seguinte, S. Martinho tem um sonho em que lhe aparece Jesus com a metade da sua capa, dizendo: “Sempre que fizeres o bem ao mais pequeno dos teus irmãos, é a Mim que o fazes…”.
Como que para eternizar este gesto de bondade, todos os anos por esta altura, cessa o tempo frio e aparecem uns dias quentes e formosos a que se dá o nome de “Verão de S. Martinho”…
Por volta de 339 pede dispensa do exército dizendo que era um soldado de Cristo e não lhe era permitido lutar. Acusado de cobardia, respondeu oferecendo-se para permanecer desarmado entre as linhas em luta. Desmobilizado, vive em Itália e na Dalmácia, vivendo depois em reclusão numa ilhota na costa lígure. Baptizado em Poitiers por Santo Hilário, de quem se torna amigo, funda por volta de 360 uma comunidade semi-eremita que dá lugar ao primeiro mosteiro da Gália e da Europa Ocidental, sendo considerado o pai do monaquismo em França.
Dedica a sua vida aos pobres e à conversão dos pagãos da Gália, penetrando nas regiões mais remotas. Numa visita que faz à sua família consegue converter a sua mãe e mais familiares, mas não o seu pai. Defende a independência da Igreja face ao poder político, opondo-se à execução de Prisciliano e dos seus companheiros (sob a acusação de rituais de magia), ordenada pelo Imperador Máximo, derruba templos pagãos e institui festas cristãs, o que nem sempre foi bem aceite, chegando por vezes a ser maltratado. Em 371 é aclamado Bispo de Tours por vontade popular, cargo que exerce durante vinte e cinco anos, com fama de taumaturgo, vivendo ali perto, num lugar solitário, que se tornou depois no mosteiro de Marmoutier.
Morre em Candes, no dia 8 de Novembro de 397,aos 81 anos de idade, sendo sepultado em Tours, quando o seu corpo lá chegou a 11 de Novembro.
O seu culto começou logo a seguir à sua morte, estando o seu túmulo colocado na Basílica de Tours, datada do sec. V, e que chegou a ser considerado o maior centro de peregrinação da Europa Ocidental.
Sulpício Severo, escritor romano e amigo de S. Martinho, escreveu ainda em vida do santo, uma biografia que muito contribuiu para a expansão da sua fama. A obra intitulada Vita Martini, alcançou tremendo sucesso, mesmo numa época em que a cultura estava circunscrita aos mosteiros e alta nobreza. Podemos dizer que foi um dos primeiros best-sellers da época medieval! A sua influência estendeu-se da Irlanda, a África e ao Oriente.
É patrono entre outros, dos alfaiates, cavaleiros, soldados, dos pedintes, dos gansos e dos cavalos. Também o é dos vinicultores e dos ébrios, talvez porque a sua festa coincida com o fim dos trabalhos agrícolas e com a prova do vinho novo nas adegas, cuja origem remonta às festas greco-romanas (as Bacanais), em honra de Baco e Dionísio, os deuses que ensinaram aos homens a cultura da videira e o fabrico do vinho, terminando estas numa embriaguez geral. Em tempos idos as festas de rua eram orientadas por uma “Confraria de S. Martinho”, formada pelos maiores bebedores da aldeia, que corriam todas as adegas e tabernas da freguesia, tocando e cantando até ficarem esgotados…
Sendo um Santo do Inverno, estão-lhe associados os frutos sazonais da época, como os marmelos (O Verão de S. Martinho também é chamado de Verão dos marmelos), e as castanhas. Em certas zonas rurais começam as matanças do porco.
Fazem também parte da tradição os magustos, que começando no dia de S. Simão, a 28 de Outubro (Em dia de S. Simão quem não faz magusto não é bom cristão), se estendem até ao S. Martinho. Famílias e amigos reúnem-se alegremente na rua, à roda das fogueiras onde se assam as castanhas que se acompanham com vinho e água-pé, tocando e dançando naquela que será a última das festas anuais ligadas ao culto da terra.
Leite de Vasconcelos considerava o magusto como o vestígio de um antigo sacrifício em honra dos mortos e refere que em Barqueiros era tradição preparar à meia-noite, uma mesa com castanhas para os mortos da família irem comer; ninguém mais tocava nas castanhas porque se dizia que estavam “babadas dos defuntos”.
Juntam-se alguns provérbios associados ao dia:
O verão de S. Martinho é bom, mas é curtinho
No dia de S. Martinho, lume, castanhas e vinho.
No S. Martinho bebe o vinho e deixa a água para o moinho.
No dia de S. Martinho vai à adega e prova o vinho.
No dia de S. Martinho fura o teu pipinho.
Pelo S. Martinho todo o mosto é bom vinho.
Quem bebe no S. Martinho faz de velho e de menino.
Pelo S. Martinho mata o teu porco e bebe o teu vinho.

Fontes: Attwater, Donald – Dicionário dos Santos, Pub. Europa-América
Butler, Rev. Alban – Vida dos Santos, DinaLivro, Lisboa
Wikipedia.org
www.leme.pt

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O Terramoto de 1755 – III

Gaiola pombalina

As ondas gigantescas do tsunami que se seguiu, chegaram a arremessar pedregulhos com cerca de 25 toneladas a mais de 27 metros terra dentro.
As comunidades estrangeiras foram seriamente afectadas tanto em vidas humanas como em bens materiais. Só os danos dos mercadores ingleses foram estimados entre os 6 e os 10 milhões de libras, os prejuízos dos espanhóis representaram um quinto de toda a despesa estatal do ano, havendo ainda a somar os prejuízos dos cidadãos alemães, italianos e franceses.
Mas não foi só em Lisboa que o terramoto e consequente tsunami se fizeram sentir. A costa do Algarve foi devastada e os portos arrasados, atingidos por uma onda de 30 metros de altura. Em Lagos morreu um em cada dez habitantes, e em Vila do Bispo, Boliqueime, Faro, Portimão, Silves, casas ruíram havendo também muitos mortos e feridos. Oeiras, Cascais, Ericeira, Peniche também sofreram danos e em Setúbal ao fim do dia tinham morrido 1.000 pessoas. Açores e Madeira também foram atingidos, havendo mortos a lamentar.
Em Madrid o abalo durou 5 ou 6 minutos, apavorando toda a gente, e em Sevilha todos os edifícios e templos ficaram danificados. Diversos locais em torno do golfo de Cádis foram inundados e a cidade registou pelo menos 200 mortos, valendo-lhe a forte protecção das suas muralhas quando uma onda de 18 metros de altura se abateu sobre ela. Salamanca, Valladolid e Palencia também sofreram sismos. No total, Espanha somou cerca de 5.300 mortos. No Norte da Europa, o abalo foi registado em Toulouse, Bordéus, Bretanha e Normandia; nos Alpes e em partes do Norte da Itália. Foi também sentido em Hamburgo, e em Inglaterra, na Cornualha, Irlanda e Escócia. No sul da Escandinávia também há registo do sismo.
Em Marrocos o sismo teve a intensidade de VII-IX na escala de Mercalli, e as cidades marroquinas de Fez e Meknès sofreram danos e perdas consideráveis, assim como Ceuta, Agadir, Salé e Tânger, havendo a registar cerca de 10.000 mortos. Locais tão longínquos como Antígua, Martinica e Barbados também foram afectados.
Durante os 365 dias que se seguiram ao terramoto, Lisboa sofreu cerca de 500 réplicas, sendo as de 8 de Novembro e 21 de Dezembro das mais violentas atingindo 7 na escala de Richter. Seis anos depois, outro terramoto violento deitou abaixo muito do que estava a ser reconstruído!
Pode imaginar-se o terror quase permanente em que a população vivia…
Quando no estrangeiro se soube do que acontecera, houve grande comoção principalmente nos meios financeiros, mas várias nações mandaram de imediato auxílio, tanto em bens alimentares, ferramentas, materiais de construção, etc., mas também dinheiro para ajudar na reconstrução da cidade e auxiliar os mais necessitados.
Foram de imediato tomadas medidas para restabelecer a ordem e reorganizar a vida da cidade. A seguir, o Marquês de Pombal meteu ombros à difícil tarefa de fazer renascer das tristes ruínas em que a cidade se tinha tornado, uma Lisboa renovada, que ainda hoje se mantém de pé, e que do alto do seu pedestal no parque Eduardo VII, ele contempla com orgulho…
O rei D. José I, só ao fim de vinte anos regressou a Lisboa, e apenas para inaugurar a sua estátua equestre na nova Praça do Comércio, vivendo sempre na Real Barraca, na Ajuda, feita de madeira…
Mas não foi só a terra que tremeu… O facto de o terramoto ter acontecido num dia santo destruindo tantas igrejas e conventos, num país extremamente católico como Portugal, onde um em cada seis habitantes vestia o hábito de religioso, e que alguém descreveu como “o país com mais padres do que qualquer outro no mundo, com a possível excepção do Tibete”, levantou muitas questões religiosas por toda a Europa, principalmente porque o clero português apoiado pelo Papa declarou que o sismo tinha sido um castigo Divino pelos pecados cometidos… Discutido largamente pelos filósofos iluministas como Voltaire, que lhe dedicou um poema de 180 versos, assim como por cientistas, teólogos e toda a camada intelectual da altura, abalou tão profundamente o pensamento europeu, que é visto como uma das datas de referência para o início da Idade Moderna.
A nível nacional foi igualmente devastador tanto na política como na vida sócio-económica e religiosa da sociedade portuguesa da época, que culminaria com a execução dos Távoras, a expulsão dos Jesuítas e a definitiva ascensão ao poder de Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras e futuro Marquês de Pombal.
Foi o terceiro sismo mais forte registado no mundo e o primeiro que pôde ser investigado” segundo linhas científicas modernas” lançando assim os fundamentos para o nascimento da moderna Sismologia. Os questionários detalhados enviados pelo marquês de Pombal a todos os párocos com a obrigação de responderem no prazo de um mês, e que se encontram arquivados na Torre do Tombo, serviram para que mais tarde se pudesse reconstituir com detalhes a catástrofe de 1755.
Os edifícios da Baixa Pombalina foram os primeiros a nível mundial a serem construídos com protecções anti-sísmicas, testadas em modelos de madeira, utilizando-se para o efeito tropas a marchar para simular as vibrações de um sismo.
Goethe tinha seis anos quando o terramoto ocorreu, mas meio século mais tarde nas suas “Memórias” escreve: “Porventura em tempo algum, o demónio do terror espalhou por toda a Terra, com tamanha força e rapidez o arrepio do medo”.
E um comerciante inglês escrevendo a um seu amigo diz: “Tal espectáculo de terror e assombro, assim como a desolação dos que o experimentaram, nunca antes terá sido igualado desde a criação do mundo”.

Fontes: Domingues, Mário – O Marquês de Pombal, ed. Romano Torres, 1955
Paice, Edward – A Ira de Deus, casa das letras, 2009
Wikipédia.org
Jornal de História, 43º fascículo
Historia y Vida, nº 486
Saraiva, José Hermano – História de Portugal

terça-feira, 9 de novembro de 2010

O Terramoto de 1755 - II

Alegoria ao terramoto de 1755 pelo pintor João Glama Stroberle


Ironia ou premonição? Para aquele 1 de Novembro de 1755 estava anunciado um espectáculo na sumptuosa Real Casa da Ópera, cujo título era ” A Destruição de Tróia”!
Lisboa comemorava também neste ano o 500º aniversário da sua elevação a cidade, e possivelmente alguém se poderá ter lembrado duma velha profecia que falava de um grande desastre a acontecer num ano com dois 5.
Dos três abalos que se fizeram sentir, o 2º foi o mais forte e atingiu 8,75 ou 9 valores na escala de Richter, e foram o suficiente para que apenas em 15 minutos, a quarta maior cidade da Europa ficasse reduzida a ruínas. Morreram cerca de 50 a 60.000 pessoas (não se sabe ao certo o número exacto), e os prejuízos foram incalculáveis
Além dos abalos e do tsunami que provocaram, os incêndios lavraram durante uma semana, ajudando a destruir o que ainda resistisse.
A Casa da Ópera, inaugurada apenas seis meses antes, considerada a melhor da Europa, foi completamente destruída pelo fogo. O Palácio Real, que se situava onde hoje existe o Terreiro do Paço, também foi destruído e com ele perderam-se a biblioteca com cerca de 70 mil volumes, incluindo manuscritos raros e partituras musicais, assim como centenas de obras de arte, incluindo pinturas de Ticiano, Rubens e Correggio, ardendo também os Armazéns das especiarias e a Casa da Índia com todo o seu arquivo – manuscritos, cartas, mapas – que se foram avolumando ao longo dos 250 anos de comércio com o Oriente e também, segundo se pensa, mais de um milhão de libras em diamantes. A Casa dos Seguros, a Bolsa do Trigo, os estaleiros da Ribeira das Naus, assim como as centenas de armazéns e lojas ribeirinhas, desapareceram tragadas pelas chamas.
O terramoto destruiu ainda as maiores igrejas e conventos de Lisboa, como a Igreja de Sto. António, as Basílicas de São Paulo, Santa Catarina, S. Engrácia, São Vicente de Fora e a da Misericórdia, o Convento de S. Francisco, o da Boa Hora, as igrejas do Loreto, da Encarnação juntamente com os seus tesouros, entre outras, e fazendo ruir o pesado campanário da Sé Catedral. O Convento do Carmo cujas ruínas ainda miram altaneiras a nova baixa pombalina, ruiu, perdendo-se o túmulo do Santo Condestável, seu fundador. O Convento da Trindade, situado do outro lado, ruiu também ao mesmo tempo, e o estrondo foi tão grande que ainda hoje se usa a expressão “Caiu o Carmo e a Trindade”. Dos 65 que existiam, apenas 5 ficaram em condições de recolher sobreviventes. O Palácio da Inquisição e o Convento de S. Domingos com as suas duas bibliotecas de 10.000 livros e 5600 volumes de manuscritos raros arderam também
O Hospital Real de Todos os Santos ardeu de uma ponta a outra e com ele centenas de doentes que não puderam fugir. Alguns outros hospitais tiveram a mesma sorte, e na prisão do Limoeiro, a maior, cerca de 400 presos encontraram a morte. Gabinetes municipais com os seus livros de registos desaparecem e em muitas paróquias não havia nada de pé.
Cerca de 50 palácios de vários nobres, entre eles o dos duques de Bragança o maior da cidade, desapareceram juntamente com as suas bibliotecas, algumas valiosíssimas, como as do Conde da Ericeira, assim como objectos de arte, pratas … O embaixador de Espanha morre à saída do seu palácio quando se preparava para fugir, ao cair-lhe em cima o escudo de pedra que encimava o portal!
O arquivo da Torre do Tombo salvou-se, graças ao seu guarda-mor, engenheiro Manuel da Maia, que conseguiu fazer retirar todo o recheio do arquivo nacional da torre que ameaçava ruir e o colocou no centro da parada do castelo de S. Jorge, onde ficou resguardado até poder ser encaminhado para o Convento de São Bento da Saúde. A Casa dos Contos foi completamente destruída salvando-se apenas as arcas chapeadas de ferro “as burras”, que foram depois entregues na Casa da Moeda, onde apenas um oficial muito jovem montava guarda sozinho. Durante três dias, depois de todos os seus soldados desertarem, repeliu as chamas conforme elas avançavam, mantendo-se no seu posto, sem saber o que teria acontecido à sua família, conquistando assim o posto de capitão que a sua bravura merecera.
Muita gente vagueava pelas ruas, muitas delas seminuas, ou apenas em camisa, mas logo a seguir ao sismo uma onda de solidariedade varreu a cidade…Fidalgos, nobres, burgueses, o clero regular e secular saíram para tentar ajudar a retirar pessoas dos escombros e abriram as portas das suas casas para acomodar, alimentar e tratar todos os que necessitassem de auxílio…
Uma senhora de idade foi resgatada vários dias depois do terramoto ainda com vida e uma menina de três anos sobreviveu sete horas debaixo dos escombros, embora ferida com bastante gravidade na cabeça. O ex-voto que o pai agradecido dedicou a Nossa Senhora da Estrela diz assim:


A nossa Senhoª da Estrella
voto que no terremoto de 1755 fez
Leonardo Rodrigues; porque fal-
tando-lhe huma filha de 3 anos
invocando ajudª Santissima a achou depo-
es de 7 horas nas ruinas das su-
as cazas com huma tão perigosa
ferida na cabeça, que atribue a sua
vida à intercessão da Soberana
Senhora.





Fontes: Domingues, Mário – O Marquês de Pombal, ed. Romano Torres, 1955
Paice, Edward – A Ira de Deus, casa das letras, 2009
Wikipédia.org
Jornal de História, 43º fascículo
Museudacidade.pt

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Mitologia vegetal


Quase todas as culturas antigas representavam a Terra e a Natureza como a grande Deusa-Mãe. Se pensarmos que a vida na terra depende das plantas e que directa ou indirectamente é a elas que vamos buscar alimentos, combustíveis, oxigénio, medicamentos, materiais de construção e uma série de outras coisas necessárias à nossa existência, não é de admirar que desde os primórdios da Humanidade, os seres humanos acreditassem que possuíam uma energia divina.
Representando o ciclo da vida (fertilidade, morte e renascimento), as suas flores são símbolos de juventude e vitalidade, mas também de fragilidade e transitoriedade. A sua forma em receptáculo torna-as essencialmente femininas e o seu desabrochar é por vezes associado ao parto. Noutras, a abertura da flor em botão representa a criação e a energia do sol, representando a natureza-morta pintada pelos artistas, a recordação da brevidade da vida.
As plantas sagradas podiam ser boas ou ruins, tanto podiam dar a vida como a morte. Na maioria das lendas sul-americanas as plantas importantes são feitas do sangue, ossos e carne de seres ancestrais, heróis míticos ou espíritos da floresta.
Os frutos tinham geralmente um forte simbolismo de fertilidade e eram muitas vezes associados às deusas da maternidade e do amor. A ingestão de um fruto tanto poderia representar o dom da imortalidade como o oposto. Adão e Eva foram expulsos do paraíso por comerem uma maçã…
Dentro deste reino vegetal, as árvores são um dos símbolos mais poderosos da humanidade. Formada por matéria lenhosa e aquosa, ela personifica a união dos três reinos (céu, terra e água) e os quatro elementos: as suas raízes mergulham na terra, a água em forma de seiva percorre-as, as suas folhas respiram o ar, e o tronco dá-nos o fogo. Embora considerada como símbolo maternal (madeira em latim é do género feminino e tem a mesma raiz comum à da mãe e à da matéria - mater), muitas delas são masculinas. No entanto, os significados atribuídos às árvores, pelas diferentes culturas são muitos e variados. As de folha persistente representam longevidade e imortalidade e as de folha caduca representam regeneração e renascimento. Umas possuíam poderes mágicos, outras possuíam o poder de curar. Tal como as plantas, umas são boas, outras nem tanto. Podiam também ser habitadas pelas divindades, fantasmas dos antepassados, ou espíritos, a quem se deviam fazer oferendas, sacrifícios e orações.
A imagem da árvore cósmica ou da vida faz parte dos mitos e contos de todos os povos, sendo algumas representadas invertidas. Este símbolo tão antigo aparece no cristianismo associado à Virgem Maria, que nos deu o seu fruto, Jesus. Maria aparece muitas vezes em árvores ou troncos ocos, e Jesus por sua vez é crucificado numa cruz feita com a madeira da árvore da ciência que brotou no paraíso, e que na tradição medieval, tinha raízes que chegavam ao inferno e cujo topo alcançava o céu.
As florestas e os bosques eram muitas vezes a morada de duendes, fadas, magos e feiticeiros, onde nalguns considerados sagrados, não se podia entrar, cortar madeira, nem caçar qualquer animal. Eram também o centro da vida religiosa e política dos povos germânicos, e na Lituânia, no sec. XI, os cristãos não se podiam aproximar dos bosques sagrados porque podiam contaminá-los.
Era à sombra das árvores que Buda meditava e os índios da América do Norte enterravam os seus mortos em troncos ocos, ou em caixas de madeira colocadas em cima de árvores.
A cor verde que ostentam é também sinónimo de vitalidade contínua, e a sua fecundidade fizeram com que se tornassem focos de antigos ritos de fertilidade. Os costumes populares em que as mulheres estéreis abraçavam certas arvores ou se deitavam por debaixo delas para engravidar são por demais conhecidos.
Com o passar dos tempos a linguagem dos símbolos foi-se perdendo e hoje, florestas inteiras desaparecem sob a mão impiedosa do Homem esquecido por completo do quanto lhes deve!

Fontes: Fontana. David – A linguagem dos símbolos
Lipp, Frank J. – O Simbolismo das Plantas
Espírito Santo, Moisés – A religião popular Portuguesa

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Dia de Finados…


Dia da Saudade

Dobra a finados…As notas são dolentes!
Junto às campas há quem reze “Avé Maria”…
E com os sinos, em triste melodia,
Leva a saudade a crentes e descrentes!

Os ramos dos ciprestes viridentes,
Sempre viçosos até à invernia,
Falam baixinho à humana fantasia
Em lágrimas de dor, frias, algentes!

À noite à luz da lua e das estrelas
Nas pedras sepulcrais há rosas belas
Crisântemos, coroas de mil flores!

E por vezes, também ajoelhadas
Muitas almas, que em lágrimas lavadas
Recordam com saudade os seus amores…

Florbela Espanca

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O Terramoto de 1755 - I


Amanheceu soalheiro e radioso aquele 1º de Novembro de 1755, apenas um pouco quente de mais para a época. O céu azul reflectia-se nas águas calmas do Tejo, que espraiando-se aos pés da cidade mais parecia um lago, onde algumas embarcações atracadas ao cais junto ao Paço da Ribeira, balouçavam docemente.
Era Dia de Todos os Santos, e os sinos das igrejas repicavam, chamando os fiéis. Embora fosse um sábado, devido à solenidade da data a maioria da população não trabalhava e corria apressada, deixando em casa as braseiras e as velas acesas, devido ao frio, e enchendo os templos onde desde muito cedo as missas se sucediam umas às outras. Os fidalgos, esses, só ouviriam a sua missa mais tarde, lá por volta das 11horas ou meio-dia. A família real tinha, partido de manhãzinha para o seu paço de Belém, nos arredores de Lisboa, onde ouviria missa e passaria o dia.
De súbito, e alguns minutos depois das nove e meia da manhã, um ruído estranho como se fosse um trovão subterrâneo, ouviu-se por toda a cidade e o solo começou a oscilar com um movimento semelhante ao balanço dos navios. Num breve espaço de seis minutos o tremor aumentou de intensidade, numa progressão espantosa. Os edifícios oscilavam e desmoronavam-se, as cúpulas das igrejas balouçavam de uma maneira aflitiva, e soaram os primeiros gritos de terror:
- Misericórdia! Misericórdia!
As pessoas, assustadas, logo que começaram a sentir os abalos nas suas casas, fugiram para as ruas, ficando logo centenas delas sepultadas de imediato sob as paredes das casas que ruíam. As que estavam nas igrejas, tentaram também alcançar a rua, mas grande parte delas ficou logo esmagada no aperto dessa tentativa de evasão. Com enorme fragor, naves inteiras abateram, esmagando os restantes. Uma espessa nuvem de poeira enchia os ares, e através dela apenas se divisavam ruínas.
O barulho parou cinco minutos. A seguir, ainda a população não tivera tempo de se refazer do pânico que sentia, um segundo abalo, mais curto, mas de maior intensidade, durando apenas três minutos, sacudiu as casas com furor, de um lado para o outro, fazendo desabar o restante. Ao mesmo tempo, das entranhas da terra, escapando-se pelas enormes fendas abertas, saiu um vapor quente, muito denso, que, juntamente com a poeira das casas derrubadas, formou uma escuridão completa, tapando a luz do Sol, e espalhando miasmas pestilentos. Os sobreviventes a custo se mantêm de pé, pois os abalos atiram-nos ao chão. Cegos pela poeira, vagueiam como que alucinados, tropeçando nos cadáveres calcinados e morrendo alguns asfixiados pelo fumo dos incêndios.
O capitão de um navio, que se encontrava ancorado no Tejo, afirmou ter visto a cidade, que ainda momentos antes estava tão bela, “ondular para trás e para a frente, como o mar quando o vento começa a levantar-se”.
Como era dia santificado, as igrejas tinham todas as suas velas acesas, o que somado às braseiras e círios ou lamparinas deixadas nas residências, provocaram dezenas de incêndios a que era impossível acudir, porque as ruas geralmente muito estreitas, estavam completamente entupidas com os escombros. De sob as ruínas subiam os gemidos e gritos dos feridos, que tinham ficado presos debaixo dos vigamentos, mas a quem ninguém pensava em acudir, porque todos queriam fugir o mais depressa possível.
O leito do Tejo sofrera uma convulsão tão violenta que as âncoras de alguns navios fundeados pularam fora de água, como peixes voadores e o rio fugia como que horrorizado das margens, repelido pela convulsão da Terra…
Imediatamente após a cessação do tremor, viram-se entrar pela barra dentro vagas enormes de dezasseis pés de altura, que apanhando as embarcações, as jogaram às praias, ou vieram depô-las em frente do paço da Ribeira. As poucas chalupas que resistiram foram ocupadas pela multidão em fuga e afundaram-se com o peso.
O Cais da Pedra, mandado construir por D. João V, desapareceu debaixo de água com todas as pessoas que ali estavam e as vagas crescendo em altura, galgaram a parte baixa da cidade, pulando sobre as ruínas, até atingir as cercanias das portas de Santo Antão, alagando o Rossio para depois se retirarem e voltarem com a mesma fúria quebrando-se nas paredes dos edifícios, trazendo consigo, enrolada nas ondas, a morte debaixo de um novo aspecto, arrastando consigo todos aqueles que se dirigiam para o rio.
Às onze da manhã, novo abalo trouxe consigo mais vagas, que para além de nova devastação, deixaram em terra inúmeras vítimas de naufrágios no rio, tornando ainda mais sinistro o quadro já de si medonho da cidade em ruínas.
Os incêndios tinham-se arrastado do centro para a periferia e ao cair da noite Lisboa estava envolvida em chamas, tão altas que se avistavam de Santarém. Por todo o lado se ouvia o pranto dos que choravam a morte dos seus entes queridos e os gemidos dos muitos feridos e estropiados, muitos deles ainda debaixo dos escombros das suas casas e que eram deixados à agonia de uma morte lenta. Com o desmoronar das prisões bandos de facínoras acharam-se em liberdade e entregaram-se a todo o tipo de violências, matando, pilhando, violando, mutilando os mortos para lhes roubarem os anéis, ajudando a incrementar os incêndios com as tochas que atiravam para o interior das ruínas à procura do que pudessem roubar…
O Rossio viu-se inundado de milhares de pessoas que choravam, gritavam, batiam-se no corpo e no rosto até fazerem sangue, muniam-se de crucifixos e imagens, entoando ladainhas e obrigando os moribundos a cerimónias religiosas, convencidos que tinha chegado o Dia do Juízo Final. No meio de tudo isto, e para aumentar ainda mais o terror no espírito dos sobreviventes, os padres, de crucifixo na mão, gritavam que a catástrofe era um tremendo castigo do Senhor, era a Ira Divina pelos pecados cometidos.
Nos paços de Belém o rei D. José I, abatido por esta fatalidade, apertava a cabeça nas mãos, perguntando:
- Que se há-de fazer? Que se há-de fazer para merecer a misericórdia Divina?
Ao que o Marquês de Pombal, muito sereno, respondeu:
- Senhor! Sepultar os mortos e cuidar dos vivos!

Ó míseros mortais! Ó terra deplorável!
De todos os mortais monturo inextricável!
Eterno sustentar de inútil dor também!
Filósofos que em vão gritais: «Tudo está bem»;
Vinde pois, contemplai ruínas desoladas,
Restos, farrapos só, cinzas desventuradas,
Os meninos e as mães, os seus corpos em pilhas,
Membros ao deus-dará no mármore em estilhas,
Desgraçados cem mil que a terra já devora
Em sangue, a espedaçar-se, e a palpitar embora,
Que soterrados são, nenhum socorro atinam
E em horrível tormento os tristes dias finam!
Aos gritos mudos já das vozes expirando,
À cena de pavor das cinzas fumegando,
Direis: «Efeito tal de eternas leis se colha
Que de um Deus livre e bom carecem de uma escolha»?
Direis do amontoar que as vítimas oprime:
«Deus vingou-se, e a morte os faz pagar seu crime»?
As crianças que crime ou falta terão, qual?
Esmagadas sangrando em seio maternal?
Lisboa, que se foi, pois mais vícios a afogam
Que a Londres ou Paris, que nas delícias vogam?
Lisboa é destruída e dança-se em Paris.

Voltaire, Poema sobre o desastre de Lisboa.

Fontes: Paice, Edward – A Ira de Deus, Casa das Letras, 2009
Domingues, Mário – O Marquês de Pombal, Ed. Romano Torres, 1955
Pinheiro Chagas, Manuel – História de Portugal