Comemorou-se no
dia 20 deste mês o Dia Mundial da Árvore e da Floresta e numa altura em que
florestas inteiras são desbravadas sem nenhum respeito pelo meio ambiente e
árvores seculares caem sob o machado do homem para se fazerem barragens, campos
de golf, complexos residenciais, etc., lembrei-me de um poema antigo de Júlio
Dinis escrito em 1867, mas que se mantém actual:
O Carvalho da
Floresta
Havia na
floresta um roble cheio de anos,
Vestido de hera
anciã, decano entre os decanos
Dos bosques do
arredor. Raízes colossais
Prendiam-no à
terra; ao ar descomunais
Os braços
elevava, e ao vê-lo assim dir-se-ia
Que aos outros
vegetais as bênçãos estendia.
Velho, e ainda a
primavera o vinha requestar,
O outono
desfolhava-o em último lugar;
Opunha ao sol do
estio a fronte espessa e bela;
Respeitava-o no
inverno o raio da procela.
Viu passar
gerações após gerações
Em risos e em
pranto, em festas e orações;
Viu crianças
pedir-lhe a sombra grata e amena,
Que, amantes ao
depois, naquela mesma cena
Viu a falar de
amor, e no seu tronco abrir
Duas iniciais
que liam a sorrir;
E mais tarde
ainda os vira, velhos, encanecidos,
Pedir-lhe em vão
alento aos lânguidos sentidos,
A repousar ali.
A coma erguida ao céu
De longe se
mostrava envolta inda no véu
De névoas da
distância. Ao regressar à aldeia,
Ansiava o
lavrador por avistá-lo, e a ideia
De tudo quanto
amava o vinha comover;
Do lar, do velho
pai, dos filhos, da mulher,
Que olhos de
tanto amor, de penas e esperanças
Lhe enviavam
também saudosas as crianças
Ao deixarem a
casa, a pátria, irmãos e mãe
Indo tentar porvir
por esse mundo além!
Em que tempos
nascera esta árvore gigante?
Que época viu
crescer o arbusto vacilante,
Curvando-se por
terra a cada viração,
Esse que já não
teme ameaças do vulcão?
Quem o pode
dizer? Nas trevas se envolvia
A infância do
colosso. E quando acabaria?
Que audaz raio
do céu, que convulsão fatal
Por terra
lançará o enorme vegetal?
Mas, aí, o que a
tormenta e o tempo não consomem,
Muitas vezes
destrói a ousada mão do homem.
Em vão a tempestade
incólume o deixou:
O golpe de um
machado um dia o derrubou,
E ao braço do
homem cai, dos homens o amigo.
Ouvi a narração
do caso, que eu prossigo.
É pela madrugada!
Hora que a amar induz,
Todo é verdura o
campo, o céu é todo luz,
O roble colossal
no tronco encarquilhado
Sente a seiva
girar. Das aves o trinado
Se ouve na
espessa copa, e ao festival clamor
Respondem num
sorriso a borboleta e a flor.
Como um velho
entretido e a ouvir cantar os netos,
Que lhe passam
nas cãs os dedos desinquietos,
Assim ele
também, vulto austero e senil,
Se compraz a
escutar a música de Abril,
Os trinos e o
bater das asas na folhagem,
A turba jovial,
da infância alada imagem.
De súbito cessou
das aves o cantar;
Param, olham com
medo o chão, o bosque e o ar,
No seio da
floresta um som vago se escuta,
Como o rugir do
mar quando nas praias luta.
O roble
estremeceu, ouvindo: - “Que será?
- Que sinistro
rumor é este?” – Perto já
Se distingue
melhor. É um travar de vozes
De alguns homens
do campo, alegres e velozes.
O roble
sossegou, e às aves disse assim:
-Podeis ficar
sem medo aqui ao pé de mim,
-São amigos que
vêm, pobres trabalhadores,
-Sobre quem eu
estendo os ramos protectores,
-Quando, durante
a sesta, o sol ardente cai.
-Aves, não
receeis. Amigos são, cantai!
-Vede, pararam
já. Tenta-os a fresca selva,
-O machado, o
alvião pousaram sobre a relva,
-Vão descansar
decerto. Ergueram para aqui
-O olhar; a
gratidão bem claro nele vi.
-Cantai, aves,
cantai nos ramos da floresta,
-Enquanto eu
lhes protejo a procurada sesta.”
Assim disse o
carvalho às aves, mas em vão,
Que nenhuma a
cantar inda se atreve então,
Ou, se alguma o
tentou, emudeceu no meio,
Que só para
gemer lhe deu vigor o seio;
Parecem pressagiar
um vago e oculto mal,
Como quando no
céu prevêem temporal.
Mas já ordens se
dão; preparam-se os obreiros;
Reparte-se a
tarefa: exercem-se ligeiros;
Já está tudo
disposto, e pronto a uma voz,
Eis se dá um
sinal…rapidamente após,
Dum dos homens
do bando o industriado braço
Lança em volta
do tronco traiçoeiro laço,
E as aves a
tremer!...”Doidas!” assim lhe diz
O velho,
sacudindo a secular cerviz;
“Das crianças é
este um usual brinquedo:
“Embaladas assim
nos braços meus, sem medo,
“Em jogos
infantis se aprazem. Não fujais.
“Doidas que
sois! Dizei, do que vos receais?
“Vê-las-eis cedo
vir, e o peso é tão suave,
“Que me alegra!
A criança é pouco mais que a ave.
“Não aves, não
fujais, que são vossas irmãs,
“Ligeiras como
vós, e como vós louçãs!!”.
Fez-se ouvir de
repente um som rápido e seco,
Que teve na
floresta um temeroso eco.
O tronco
estremeceu. As folhas sem vigor
Caíram pelo chão,
quais lágrimas de dor.
As aves a gemer,
das frondes sacudidas
Fugiam em tropel
como ilusões perdidas!
No tronco, em
fundo golpe, o ferro penetrou;
A árvore, ao
senti-lo, um pouco vacilou,
Mas depois disse
ainda às pobres andorinhas
Ocultas, a
tremer, nas árvores vizinhas:
-Foi doloroso o
golpe! Útil porém talvez.
O destro
rachador derruba muita vez
Algum ramo já
velho, inútil, parasita,
-E à fecundante
seiva o curso facilita.
-Agora foi mais
fundo, e rijo o golpe foi,
-E perto da raiz.
Por isso mais me dói!
-Errou talvez ao
dá-lo a mão inexperiente,
-O golpe foi
cruel. Se foi! mas inocente.
Eis que ao
primeiro golpe, um outro se seguiu.
E outro, mais
outro e outro; e o eco os repetiu,
E as aves a
carpir do velho amigo a sorte.
Não se ilude ele
já; ferido pela morte
Falece-lhe o
vigor; das achas ao brandir
Vacila, geme,
ondeia! É próximo a cair.
Prossegue no
entretanto a abominável obra,
Da turba
afadigada o vozear redobra,
No íntimo do
lenho, o ferro ímpio, cruel,
As fibras
despedaça. Os homens em tropel
Arredam-se a
distância, a fim que os não esmague
O gigante ao
cair e, moribundo, pague
A morte que lhe
dão, sacrílega e atroz.
-“À obra, à obra”,
então alto soa uma voz,
E todos lançam
mão da preparada corda.
A triste ave da
noite à vozearia acorda,
Solta um lúgubre
pio. Um frémito subtil
Nas folhas passa
ao roble. A brisa foi de Abril
Que veio ali
dizer-lhe a extrema despedida?
Beijá-lo a
última vez, saudosa e comovida?
Oscila, geme
ainda, estala-lhe a raiz,
Solta como estertor
de morto. Ouvis?...Ouvis?
Inclina-se para
a terra, em queda suave, lenta,
Desce…Desce e,
descendo, a rapidez aumenta.
Até que com fragor
na relva ao longe cai
O roble secular!
Homens, folgai! folgai!
Retumba na
floresta o som que fez na queda,
O fragor do
trovão nos mares arremeda,
E as aves,
levantando o voo alto e veloz,
Às nuvens vão
contar o caso iníquo e atroz;
E com sentido
pranto, e em queixas magoadas,
Choram-no pelo
bosque as comovidas fadas.
E a obra do
Senhor às mãos do homem caiu!
E a vida secular
numa hora se extinguiu.
E os obreiros do
mal saem dali cantando.
Chega logo
depois um turbulento bando
De crianças, que
a rir, o tronco sem vigor
Calcam,
brincando. E após em práticas de amor,
Voa rápido o
tempo a amantes e esposos
Que ali falando
vêm. Depois, velhos, saudosos
Do tempo que
passou por eles em comum,
Sentam-se a
conversar. Mas deles, ai, nenhum
Uma lágrima tem
para desgraças destas.
Homens, que mal
vos fez o velho das florestas?
Júlio Dinis in “Poesias”.