domingo, 26 de setembro de 2010

E A FLORESTA NASCEU…


O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora do seu decúbito, que se agitou molemente. Volveu a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, libertou-se da cela e pulou no espaço. Que pára-quedista!
Precipitado tão alto do pinheiro solitário, balouçou-se um instante e ensaiou um voo oblíquo. A meio caminho volteou, rodopiou, viu as nuvens ao largo, a terra em baixo e, saracoteando a fralda, desceu em espiral. Poisou em cima de uma fraga, ligeiro como um tira-olhos. Mas novo pé-de-vento atirou com ele para a banda, quase de escantilhão, e a aleta tomando-se de improviso fôlego, arrebatou-o para mais longe. Foi cair numa mancheia de terra, removida de fresco pelos roçadores do mato, e ali permaneceu à espera que pancada de água ou calcanhar de homem o mergulhasse no solo, dado que um pombo bravo o não avistasse e engolisse.
Também ali perto, por uma tarde fosca de Outubro chegou um gaio, voejando de chaparro em chaparro, a grasnar mal-humorado como é próprio da raça. No saiote desbotado, as duas pinceladas de azul, azul retinto, fulguravam para que se soubesse que um gaio também é gente dos ares. Trazia no bico uma bolota. Dispunha-se a comer a merenda bem amargada quando deu com os olhos no mariola do vizinho com quem bulhara uma Primavera inteira por causa da gaia, depois sua mulher. Já esse tal, rancoroso e mau, dava jeitos de querer investir, penas riças, garras desembainhadas, as asas possuídas de frenesim. Que remédio senão preparar-se para o receber condignamente. E deixou cair a glande. Esta foi bater na face zenital dum velho toro, saltou de ricochete para o lado e, aninhou-se muito aninhada num monte de folhas secas e argalhos. Ninguém a via, nem ela via a mais pequena nesga do mundo.
E ali ficou muito quieta, muito bem refastelada em virtude do seu próprio peso, enterrada que nem pelouro de batalha depois de passarem carros e carretas. Que fazer senão deitar-se a dormir?! Dormir uma hora ou a vida inteira, quem sabe?! Um laparoto veio de lá de cascos de rolha, rapou a terra, fez um toural, aliviou-se, e ela ficou por baixo, sufocada sem poder respirar, em plena escuridão. Estava no fim do fim? Um belisco, e do seu flanco saiu como que uma flecha. Era de luz ou de vida? Era uma fonte ou antes um cântico de ave, de água corrente, de vagem a estalar com o sol, dum insecto na sua primeira manhã, música trilada da terra ou das esferas? Era tudo isto, encarnada no fogo incomburente que lhe lavrava no flanco, verbo que acabou por irradiar do próprio mistério do seu ser.
Do pinhão que um pé-de-vento arrancou ao dormitório da pinha-mãe, e da bolota, que a ave deixou cair no solo, repetido o acto mil vezes, gerou-se a floresta. Acudiram os pássaros, os insectos, os roedores de toda a ordem a povoá-la. No seu solo abrigado e gordo nasceram as ervas, cuja semente bóia nos céus ou espera à tez dos pousios a vez de germinar. De permeio desabrocharam cardos, que são a flor da amargura, e a brótea, a diabelha, o esfondílio, flores humildes, por isso mesmo troféus de vitória. Vieram os lobos, os javalis, os zagais com os gados, a infinita criação rusticana…

Fonte - Nova Colectânea 3, Didáctica Editora, pg.138, um excerto de “A Casa Grande de Romarigães” (1957), de Aquilino Ribeiro

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