quarta-feira, 20 de outubro de 2010

A prisão de Camões…

A prisão de Camões
no dia da procissão do “Corpo de Deus”


Imaginem-se agora as ruas tapizadas de espadanas e de flores, as músicas, as danças, as folias, que desde a véspera do dia soleníssimo traziam em alvoraçada espectação a gente da cidade. Figure-se a turba a condensar-se nas ruas estreitas e angulosas, nas Quelhas e corredouras, nos adros e nas praças irregulares. Acrescente-se a escassez, a quási ausência da polícia, a liberdade quási ilimitada, que para as festas populares e para as diversões de praça pública disfrutava a plebe naqueles tempos, como se fora a providencial compensação da estreita liberdade política e civil sob a antiga monarquia, e teremos a imagem de quais seriam os desmandos, as rixas, as pendências, naquela ocasião de pleníssima licença na cidade.
O Camões, por mancebo, ocioso, enamorado, é certo que naquele dia andava dando tréguas às suas amarguras. Pendurada a lira no lôbrego aposento, que a pobreza habitual lhe consentia por tugúrio, vagueava pelas ruas e praças de Lisboa, espaciando-se como os demais fidalgos, os burgueses e os peões, confundido na espessa mó do povo.
Achava-se o Camões nas cercanias de S. Domingos – quem sabe se dizendo algum requebro às donas e donzelas que passavam – quando a sua fortuna lhe deparou ocasião a uma inesperada e nova desventura. Corriam naquele dia pela cidade muitos homens, que em traje de mascarados, a pé ou a cavalo, se desenfadavam, como se fora em tempo de carnestolendas. Andava a cavalo passeando, um certo Gonçalo Borges, que tinha a seu cargo os arreios da casa real, e sucedendo de passar pela rua de Santo Antão, por detrás do convento de S. Domingos, dois mascarados a cavalo o investiram com zombarias e motejos. Sentiu-se e irou-se o criado de El-Rei. Vieram às mãos ofendido e ofensores. Eram os dois cavaleiros amigos do Camões. Estava presente. Estimula-o a amizade, incita-o o fervor do sangue juvenil e belicoso. Acode à briga em defensão dos seus contubernais. Leva da espada; fere o Gonçalves Borges na refrega. Abre-se devassa, e é nela compreendido. Prendem-no. Dão com ele no Tronco da Cidade. Para quem já tinha um desterro verdadeiro e talvez outro dissimulado com aparências de vontade, não seria de estranhar que a má sorte lhe aparelhasse na cadeia uma nova provação. Felizmente, o Gonçalo Borges, que seria também rixoso porventura, sarou da ferida, que o poeta lhe fizera, e, com generosa indulgência de mancebo, não porfiou em se vingar do seu antagonista, sendo-lhe parte no processo. Perdoou, por autêntico instrumento de notário público. E El-Rei D. João III, por sua provisão datada de Março de 1553, atendendo a que o ofendido não queria demandar Luiz de Camões, nem criminal nem civilmente, mandou que soltassem o poeta, alegando da sua parte, para justificar o indulto, o ser ele mancebo e pobre e ir naquele ano servir a Índia.
Apenas onze dias depois que saíra do seu cárcere, o Camões partia para a Índia, a tentar naquele teatro da glória portuguesa, e não menos da cobiça aventureira, a melhoria que a fortuna, sempre adversa, na Pátria lhe negara. Embarcou-se o poeta no próprio navio de Fernám Álvares Cabral, que naquele ano de 1553 ia por capitão-mor de quatro naus.

Fonte: Fontinha, Rodrigo Fernandes -Antologia Portuguesa, 1943, Livraria Simões Lopes, 4ª edição.
Texto retirado do livro “Galeria de Varões Ilustres”, de Latino Coelho.

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